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Jurema Barreto de Souza, jornalista, foi editora da revista A cigarra em SAnto André.
Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 04 de julho de 2005.
Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC
Entrevistadores: Herom Vargas, Olga de Fávaro, Fábio Vergamati e Eduardo Chaves.
Transcritores: Meyri Pincerato, Marisa Pincerato e Márcio Pincerato.
Pergunta: Por favor, comece pela data e local de seu nascimento e fale um pouco sobre a sua família.
Resposta:
Nasci em Santo André, no dia 28 de agosto de 1957, sempre morei no mesmo bairro, na Vila Alpina, em Santo André, próximo à Igreja Santo Antônio. Minha mãe é filha de italianos e meu pai é filho de portugueses, por isso meu nome é Jurema, por sugestão da minha avó paterna. Minha mãe também tem uma parte da família que veio da França, talvez por isso que eu gosto tanto de Paris, que nunca vi. Estudei em Santo André, no Instituto Coração de Jesus, fiz os primeiros estudos no Educandário Santo Antônio, uma escola que hoje cresceu bastante, no Instituto Coração de Jesus tive o prazer de estudar lá por dez anos, onde tive contato com literatura e esse fazer poético. Na escola, eu fazia os murais, e a gente fazia palcos com assuntos. Na região onde eu morava, na época era um bairro mais humilde e com o passar do tempo, hoje ele é considerado nobre, próximo ao Bairro Jardim. A gente conseguiu ver a mudança, ser testemunha ocular da história da cidade.
Pergunta: Que lembrança você tem do seu bairro?
Resposta:
Eu me lembro da Igreja Santo Antônio. O Educandário Santo Antônio era dirigido pelos padres na época, e era bem conservador. Você era obrigada a ir à missa, senão perdia pontos na escola. É uma coisa um pouco pesada para uma criança, que não entende. Ali tinha o Cine Arte, que nós, principalmente a garotada, quando tínhamos uns 10 anos, juntávamos todos os trocadinhos para irmos à matinê. Era um acontecimento o Cine Arte, que hoje é uma gráfica.
Pergunta: O prédio ainda existe?
Resposta:
Existe. Chegou a ser um supermercado, mas acabou sendo vendido para particulares. Teve uma época que até tentaram retomá-lo, com a tentativa do Carlos Gomes, mas acabou sendo vendido. Naquela época aconteceram muitas coisas. Existia o Teatro Glória, que era perto do educandário. Existiam algumas manifestações artísticas. Eu tive pouco contato pela minha idade, mas o pessoal se apresentava. A gente chegou até a fazer pecinhas pela escola. Era um bairro que acabou progredindo bastante e hoje tem tudo. Você não precisa sair para quase nada e pode ficar naquele bairro. É muito bom.
Pergunta: Seu pai trabalhava em quê?
Resposta:
Meu pai era alfaiate e trabalhava no bairro mesmo. Teve uma época em que ele trabalhou no Moinho São Jorge e ele trabalhou também como tecelão, tecendo naquelas máquinas. Depois ele fez curso e acabou se especializando em alfaiataria. A minha mãe era funcionária da Câmara Municipal de Santo André, era professora, deu aula no Coração de Jesus primeiro, antes de ser ampliado, e depois ela entrou, um pouco antes de eu nascer, entrou na Câmara e se aposentou como chefe do Serviço de Comunicação. Então, dessa parte também lembro, os momentos políticos que aconteceram em Santo André. Eu era muito pequena, mas me lembro que eles não deixavam ninguém sair da Câmara por conta de problemas, discussões que havia lá, eu não me lembro bem da época, mas sei que foi muito triste ficar sem a minha mãe, porque eles não deixavam ninguém entrar nem sair. Não foi em 1964, mas foi em outro evento político que teve lá. E Santo André, meus pais tiveram sempre, ficaram casados 39 anos, depois meu pai faleceu, mas meu pai tinha toda uma religiosidade e inclusive, quando ele veio da Bahia, eles eram católicos e ao mesmo tempo umbandistas, pela miscigenação religiosa. Eles misturavam um pouco as religiões, o que era interessante, porque eu tenho uma influência e uma curiosidade pelas religiões também. Eu tenho poemas onde coloco Iemanjá, noutros coloco Joana D'Arc, os mitos religiosos que acho interessantes, principalmente quando são mulheres; a força feminina da natureza e da religião. Então, eu acho interessante e tudo isso acaba por influenciar a poesia da gente. Toda a curiosidade, eu gosto de estudar, tenho vários livros que estudam a vida religiosa africana, os ritos gregos, esse inconsciente do mundo inteiro, como as pessoas vêem as suas deidades, como os homens criam os seus mitos. Acho fantástica essa história. Existia toda essa influência e eu fui estudar no colégio de freiras, que tinha todo um panorama religioso.
Pergunta: Seu pai participava de umbanda?
Resposta:
Ele era médium, e como eles falam lá, dava passes e tal. E foi muito interessante, porque eu tive contato com alguns comportamentos, algumas mentalidades que a gente nem sempre pode negar que existem. Como eu brinco, falo que acredito em tudo, porque a gente não sabe o que tem entre o céu e a terra, é interessante a gente acreditar que existe um mistério, que se a gente fosse só pensar no comum, no normal, no que a gente vê, a gente acaba sem a magia. Acho que existe a magia na literatura, na arte. Então, foi todo um processo. A arte foi alimentada na minha vida por várias fontes. Meus pais não tinham, minha mãe pinta quadros e sabia violino e piano e meu pai já tinha uma cultura mais rústica. A minha avó, eles faziam aquelas festas juninas, que até lembrei nessa época, festas juninas de verdade, de acender fogueira. Meu pai chamava Pedro, então assavam peixes no dia de São Pedro, toda uma tradição que está se perdendo, mas para a gente, que era criança, era um fator de união de brincadeira.
Pergunta: Quantos irmãos você tem?
Resposta:
Eu tenho só um irmão, que nasceu quando eu tinha 18 anos já. Ele tem outra visão, outros interesses, é de uma outra geração praticamente. A gente acompanha e vê a mudança. Você vê como pensa o jovem de hoje, um pouco imediatista, e eu já não, sempre gostei de pesquisar, de arquivar, esse espírito arquivista de guardar a história. A gente faz tudo isso, e vamos pesquisando.
Pergunta: Por um bom tempo ficou como filha única?
Resposta:
Fiquei bastante e fui muito ciumenta. Filha única é terrível. A gente fala que foi meio boazinha, mas não é assim. A gente tem meio que o mundo à nossa volta.
Pergunta: E a família, o bairro?
Resposta:
Essa é uma das coisas que a gente sente muita falta porque o bairro cresceu, as pessoas, muitos faleceram, muitos mudaram, os amigos que eu tinha, a garotada se reunia na casa de um e de outro, brincávamos na rua, pulava corda, coisas que as crianças não têm hoje.
Pergunta: Ia perguntar se você se lembra das brincadeiras.
Resposta:
Lembro. O pessoal pulava corda, a gente tinha amarelinha, currupio.
Pergunta: Como é esse?
Resposta:
Aquele que as crianças dão a mão e ficam rodando. As rodas cantadas. A gente tinha bastante coisa nessa época. Hoje a gente quase não sabe quem são os vizinhos. Os vizinhos acabaram vindo, porque o bairro se tornou um bairro nobre e muito bem localizado, mas você não tem mais intimidade com as pessoas. Nós temos contato com umas duas ou três vizinhas que permaneceram lá, que já têm bastante idade e de vez em quando a minha mãe vai visitá-las e quando precisam de alguma coisa a gente tenta ajudar, mas as pessoas que moravam, a maioria dos amigos eu tive fora, os amigos do colégio, da faculdade, que marcaram mais. Eu fiz até o colegial no Coração de Jesus, depois entrei na Fundação Santo André e lá conheci outras pessoas, foram sendo desenvolvidas outras atividades. Como eu sempre gostei de ler, eu tive uma sorte, porque muitas pessoas falam que ficaram traumatizadas porque tiveram de ler Machado de Assis. Eu gostava. Eu não sei por que eu nunca achei terrível ter de ler Machado de Assis, Gil Vicente. A gente estudava algumas coisas assim. Eu fiz o curso de tradutor e intérprete no colegial e eu gostava da história da literatura, dos poetas, desde o modernismo, classicismo e lia um pouco de tudo. Não tinha preconceito. Sempre fui muito aberta a conhecer as coisas novas, nunca falei que não gostava antes de ler. Depois você vai formando as suas preferências, sua bagagem e daí você decide o que gosta ou que toca mais o seu espírito, suas emoções. Mas eu não tive muito esse problema de rejeição quanto ao que era dado para ler, os trabalhos, gostava de fazer trabalhos e as pesquisas sempre foram muito interessantes.
Pergunta: Quando seu pai faleceu você tinha quantos anos?
Resposta:
Eu já era moça. Meu pai faleceu em 1995, há 10 anos. Ele era uma pessoa que tinha muita fé, muita religiosidade, uma pessoa muito espiritualista. Ele tinha muita fé, era uma pessoa que tinha fé nas coisas boas. É interessante. Mamãe já era mais pessimista. Ele tinha toda essa manifestação religiosa e eu acompanhava muito. Uma época ele acabou entrando para uma outra religião e deixou um pouco a umbanda de lado, mas sempre acreditou.
Pergunta: Virou evangélico?
Resposta:
Foi. Só que foi uma coisa um pouco, preferia quando ele estava na umbanda, porque ele tinha uma mente mais aberta. Ele se tornou evangélico da Universal do Reino de Deus e acabou ficando muito preso a esses conceitos deles, se tornou preconceituoso, o que ele não era, é interessante, em relação às outras pessoas. Eu achei que foi uma parte que não foi positiva na vida da gente.
Pergunta: Seu pai era alfaiate e trabalhava em casa?
Resposta:
Ele trabalhava em casa e às vezes trabalhava na Rua das Monções, numa alfaiataria. Inclusive lembro que eu ia com ele, porque como minha mãe trabalhava na Câmara, então na parte da tarde ela trabalhava lá e eu não podia ficar com ela e eu lembro que eu ia para a alfaiataria, quando ele trabalhava fora de casa, e sentava lá e ficava contando botões, porque eu sempre fui sossegada. Eu lembro que quando eu ia à Câmara, eu comecei a escrever em máquinas Remington e não parava mais. Eu não dava trabalho a ninguém. Era uma criança que sentava à máquina e já começava. Tanto que tenho duas máquinas que foram as companheiras de primeiras escritas, que eu as guardei. Hoje tenho computador, mas tenho toda uma afetividade. Eu me apego às coisas. Sou como o gato, que se apega a casa, às coisas. Tudo tem uma história, dentro das coisas que eu guardo, uma história de ligação, de afetividade, de acontecimentos. Tinha essa parte.
Pergunta: E você fez faculdade?
Resposta:
Fiz na Fundação Santo André letras e tive, quase jubilei na faculdade porque fiz tradutor e intérprete no colégio e aí eu fui fazer a faculdade de letras. Só que a gente não conseguia emprego, porque tradutor e intérprete tinha de ter experiência, aquela coisa de sempre, que todo mundo sabe. O que eu ia fazer? Aí voltei a fazer o normal, porque com uma família toda de professoras, mãe, tia, primas, todas professoras, vamos tentar fazer o magistério. Aí eu fiz o magistério junto com a faculdade, só que era pesado, porque eu tive de voltar, peguei a mudança de lei, e tive de fazer do segundo ano até o quarto. E voltei e não conseguia conciliar. Tive de fazer as famosas DPs, fazia uma matéria em um ano e no outro fazia outras, para conseguir, e quando terminei o magistério fiz o quarto ano inteiro. Mas foi boa essa minha ruptura, porque senão não teria encontrado as pessoas que fizeram a revista comigo. Tudo tem o destino, acredito muito nisso, que as coisas estão escritas em algum lugar, porque é muito interessante o rumo que as coisas foram tomando. E lá na Fundação eu tive muitos amigos que falavam a mesma língua, que tinham arte, poesia, que foi quando a gente começou a se juntar a fazer o alternativo, que se chamava Jornal Literário A Cigarra e a gente editava os poemas. Fazíamos uma coleta do pessoal que estava a fim de se arriscar, publicávamos e depois distribuíamos na faculdade.
Pergunta: Como era esse meio universitário nos anos 70?
Resposta:
Comecei em 1976, depois tive as falhas, mas estava sempre dentro da faculdade, porque nunca perdi o contato.
Pergunta: Como era a vida universitária?
Resposta:
Em 1976, quando entrei, existia um ar estranho ali, porque era tudo muito careta. Você aprendia e tal. Eu entrei na faculdade de letras achando que ia encontrar o caminho para tudo aquilo que eu já escrevia desde os 13 anos, gostava de escrever. Fui com a intenção de desenvolver todo esse meu potencial da literatura, e era uma coisa que não tinha muita vida ali, não tinha um movimento. Era ir, estudar, fazer trabalhos, mas não sentia um espírito universitário. Nós tivemos também nessas coisas da ditadura educação moral e cívica, que eles falavam da organização política e social e aconteciam algumas discussões e a gente percebia que existiam pessoas vigiando, cortando a liberdade de expressão. Algumas pessoas não podiam falar o que pensavam. A faculdade ficava uma coisa meio morta.
Pergunta: Os professores cortavam?
Resposta:
Os alunos mesmo, as pessoas que tinham um pouco, o pessoal de ciências sociais que mais agitava, as discussões eram mais fora das classes. Letras então, era o pessoal que queria ser secretária ou professor, mas não tinha discussões políticas. O que a gente foi discutindo foi por fora, não como estudante. Eu nunca senti esse envolvimento, essa vontade de mudança. No tempo que estive na faculdade não senti isso.
Pergunta: Extra classe, você participava do quê? Do diretório acadêmico?
Resposta:
O diretório acadêmico tentou se fortalecer, mas realmente acabou. Depois de muito tempo que existiram alguns focos, mas não tinha uma vida universitária, que as pessoas se encontrassem e dali surgissem idéias novas. Eu não sentia isso. Talvez em outras áreas isso tudo ocorresse. Meu curso começou com cento e poucas pessoas e no fim trinta era muito, porque na formatura, as pessoas muitas vezes vão para a faculdade com a coisa profissional, com a vontade de tirar o diploma, e muita gente desistia porque viam que não era, não sei o que as pessoas pensavam. Quando eu fui, já fui pensando o que eu queria. A gente estudava, mas conhecia o que era o curso de letras, era isso que eu quero ou não. E muitas pessoas entravam, mas acabavam desistindo porque não era aquilo. Entravam para ter um diploma. Isso eu achei sempre abominável. Não é por aí. Inclusive hoje em dia está quase a mesma coisa. A gente fica muito irritada porque você vê as faixas de primeiro e segundo graus em dois anos. Quer dizer, você estuda a sua vida inteira, estuda mesmo, porque eu nunca consegui não estudar, levar a coisa na brincadeira, e hoje se vendem diplomas e tudo mais. Acho que piorou muito dessa época.
Pergunta: E a sua experiência de adolescente com relação ao lazer. Quais eram as atividades?
Resposta:
A gente tinha os cinemas, ainda freqüentei alguns bailinhos que tinha, dos amigos, bailinho de garagem, fui a poucos, porque depois o hábito se perdeu. Eu ia passear na casa de tias, visitar parentes, tios e primos e quando estava na adolescência a gente tinha um fã-clube de música americana. Nós nos conhecemos a partir de um conjunto, que na época era o grupo Monkees, que até voltou a passar, era muito interessante, e começamos a formar um grupo. Esse grupo... Nós nos tornamos amigas por muitos anos, tivemos uma Associação Internacional das Fãs dos Monkees e lá eu era a secretária arquivista, que cuidava da correspondência. Era muito interessante. Hoje, depois que fui conhecer a música americana, os movimentos e tudo mais, mas na época a gente tinha raiva dos Beatles, porque a gente achava que era mentira que os Monkees eram uma cópia dos Beatles. Mas eram mesmo. Hoje a gente sabe da boca deles, dos documentários. Era uma coisa que, ao mesmo tempo em que a gente sabia que existiam muitas coisas acontecendo no mundo, era uma certa alienação agradável. A gente se juntava, traduzia músicas, como sempre gostei de traduzir. E dentro dessas traduções começou a surgir coisa da poesia, porque você via a poesia nas letras. A gente fazia muito teatro, porque eram umas vinte pessoas no grupo, a maioria meninas, lógico, e a gente fazia peças de teatro, curtíamos depois outros artistas, fomos abrindo nossos horizontes, conhecendo outras artes. Depois, como tudo, com o tempo acabam, as pessoas se mudam, mudam de cidade, ou casam-se e cada uma vai enfrentar a vida adulta e a gente acabou se perdendo e nos encontramos há dois anos. Começamos a nos encontrar pela internet, fizemos um encontro, depois de muitos anos. Foi muito interessante. Foi um meio de ter a tribo, porque todos adolescentes têm uma tribo. A nossa foi ao contrário dos outros. Em vez de a gente ir a todos os lugares, a gente ia por um grupo que ninguém aceitava, mas a gente via as qualidades, a inocência deles e era tudo muito divertido.
Pergunta: E tinha, além dos Monkees, outros grupos ou estilos de música que você gostava?
Resposta:
Sempre gostei muito do Caetano, do Milton Nascimento, daquela MPB que tinha na época, Simone curti muito, porque tinha a tal da Cigarra, que pela canção tirei o nome da revista, que foi um lance que as cigarras cantaram na hora que ela estava cantando a música e foi bem na hora que estava pensando em que nome ia pôr ao meu alternativo. Tocou a música e as cigarras cantaram, porque tenho várias árvores em casa, pequenas, mas tinha uma bem grande e pensei que ia ser cigarra o nome. Tinha toda essa coisa. Gostei de todo tipo de música. Teve uma época que gostei de músicas antigas, tipo Noel Rosa, chorinho, fui sempre muito eclética, porque desde o quarto ano do primário, quando ganhei um radinho de pilha, lindo, e fiquei ouvindo, então ouvia tudo, desde Nelson Gonçalves, Dolores Duran. Sempre gostei de tudo um pouco. Tem músicas de certos cantores e certos compositores que gosto bastante. A Noite do Meu Bem, que a Dolores Duran canta, eu lembro bastante dessa música, ela cantando na TV. Eu não me lembro muito bem porque era pequena, mas teve um dia em que ela cantou na TV ao lado de piano e aquilo marcou. Não sei como, uma coisa tão simples, e aquilo ficou para sempre. Existem músicas que marcam.
Pergunta: Aproveitando o gancho, o que você assistia na televisão?
Resposta:
No bairro eu fui uma das primeiras que teve televisão... Era o televizinho, porque a casa era antiga e tinha aquelas janelas grandes, que abriam para fora e iam bem próximas ao chão e o pessoal vinha assistir, ficavam do lado de fora. Eu dou muita risada quando vejo as retrospectivas, porque eles mostram os televizinhos. Uma novela que a gente assistia era Redenção, uma novela que durou anos. Parecia que aquilo nunca mais ia acabar. O Anjo da Cara Suja. Eu era muito noveleira. Em algumas novelas o enredo de hoje são caquinhos de tudo que eu já vi e agora não assisto mais porque não vejo mais a magia. É só um remake das coisas. Existia o famoso Circo do Arrelia, que inclusive conheci o Arrelia no Teatro de Alumínio. O pessoal pergunta se eu vi o Teatro de Alumínio. Eu vi. Era ali onde hoje é a Perimetral. Eu lembro que ele era enorme. Eu tenho uma memória infantil muito viva e lembro que eu era apaixonada por ele da TV e fui visitá-lo, e ele era enorme, colorido. Eu sempre gostei dele e foi o único palhaço que achei engraçado até hoje. Ele era fantástico. A gente via isso. Depois, na década de 60 tinha O Vigilante Rodoviário, Roy Rogers, Bonanza. Acompanhei tudo. Era muito televisiva, porque eu tinha e não fui muito de brincar o tempo inteiro na rua. Eu gostava de ver os programas. Hoje tem até passado algumas coisas da época, retomando as cult series, Nacional Kid, e algumas coisas que eram bem interessantes na época. Tudo era mágico, embora fosse em preto e branco. A Lassie era uma coisa mágica.
Pergunta: E já adolescente, como eram os namoros, as diversões, a atitude dos pais?
Resposta:
Meus pais eram bem, não digo que eram severos, mas era uma coisa muito tradicional. Eu quase não tive namorados, como hoje as meninas namoram. Eu tive umas paqueras, mas não namorava. Eu namorei um rapaz, por 12 anos, só que não dava certo porque eu queria ser poetisa e ele achava que era besteira e não chegamos num acordo. Tive de escolher a minha vida literária ou me acomodar no modelo que ele queria me impor. Mas não tinha, não fui namoradeira. Fui muito preocupada em encontrar a pessoa perfeita, todo aquele mito.
Pergunta: Os seus pais não deixavam você namorar?
Resposta:
Até deixaram. Eu comecei a namorar com 15 anos. Não impediram, mas eu tinha tantas outras coisas para pensar. Eu só namorei quando me apaixonei, aquela coisa que cai o raio e você se apaixona. Eu tinha amores platônicos pelo cara do conjunto, pelo Roberto Carlos, coisas assim. Enchia a parede de pôster. Não tinha uma vida social agitada, porque no colégio de freiras a gente só estudava com meninas, trabalho com as meninas. Algumas festinhas que tinham eram com os irmãos das meninas. Você não conhecia muita gente. Fui conhecer mais gente depois, na faculdade, quando você começa a ter amigos e tudo mais. Meus pais, quando eu nasci, minha mãe já tinha 35 anos e meu pai tinha quase a mesma idade. A visão de mundo dela era aquela bem antiga. Embora ela tenha sido sempre uma mulher bastante independente, trabalhou fora e tal, ela imaginava, ela tinha aquela idéia de proteger, de você ter de casar, que a mulher só se realizaria assim, tendo um lar. A gente sabe hoje, com a evolução, que a sua importância como ser humano não se prende ao modelo em que você se insere. Tanto faz a mulher ser solteira ou ser casada, ter filhos ou não, você tem a sua individualidade. Acho que hoje em dia a mulher tem de lutar por isso. A minha visão mudou cento e oitenta graus do que eu imaginava. A gente acaba conhecendo um mundo muito grande, principalmente através da literatura, da leitura. A leitura sempre foi uma viagem.
Pergunta: Você teve essa iniciação literária em casa e no colégio?
Resposta:
Sim.
Pergunta: Quando você começou a escrever com mais dedicação, com mais consciência?
Resposta:
Eu comecei a escrever, lógico, de brincadeira. Toda adolescente escreve uns poemas e havia uma amiga minha que escrevia e ela falou que escrevia e eu também escrevia. Aí fomos fazer poemas tentando desafiar. Fizemos um concurso entre as meninas e o pessoal começou a gostar mais dos meus poemas. Ainda bem que não briguei com a colega, mas ela parou de escrever e eu continuei. Eu escrevia muito compulsivamente, como toda adolescente, e quando entrei na faculdade também, porque o contato com a literatura e tudo mais, me fez escrever, quase que mediunicamente, nada que se aproveitasse depois. Mas eu tinha histórias na cabeça e escrevia um monte de coisas. Lá nós tínhamos o pinicão, aquele espaço na Fundação que tem os bancos, eu matava aula para escrever.
Pergunta: Como é o nome?
Resposta:
É pinicão. É uma parte sobre o teatro e em cima parece um pinico. Eles construíram uns bancos de cimento e lá o pessoal sentava e estudava, namorava e tudo mais. Era muito divertido. Quando eu fui, em 1980, eu tinha muita coisa escrita, montei um livro, tudo mimeografado, aquela coisa, você monta um livro sem saber o que fazer com aquilo, que hoje você vê que era péssimo e ainda bem que nunca o coloquei na praça. Comecei a fazer tudo aquilo e as pessoas, a minha família não tinha muita afinidade, tinham um conceito muito ruim de poetas, que poeta é pessoa que vive nas nuvens, que o poeta morria tuberculoso, na miséria e era um preconceito terrível. E aí surgiu um concurso em Santo André, que era de Jovens Escritores do ABC, antes de fazer A Cigarra, que foi em 1982. Eu peguei e falei: Vou me inscrever com esses poemas. Era tipo um pacto, se eu não ganhar o concurso, eu paro de escrever e, se ganhar, eu continuo. Eu ganhei.
Pergunta: Em que ano?
Resposta:
Em 1980. Ganhei esse concurso com um poema sobre...
Pergunta: Havia muitos concorrentes?
Resposta:
Acho que sim. Não devia ser um concurso de centenas, nunca cheguei a saber. Até fiquei em dúvida, se tinha pouca gente concorrendo ou se eu era boa. Em todo caso, na época a Inajá participava da secretaria e o Dr. Muller de Paiva e foi muito interessante, porque eu ganhei esse concurso com um poema sobre as crianças abandonadas, um policial e um menos delinqüente e tudo mais. E a coisa mais interessante é que no júri existiam professores da Fundação. Alguns ficaram assim, porque não sabiam que eu tinha essa veia artística, alguns ficaram contentes de eu ter ganhado. Aquela coisa da gramática, a gramática em si não me atraía, eu era péssima nas provas que tinha de pôr conjunções, analisar, conjuntiva, não sei o quê. Um dos professores, que era jurado, disse: Eu não acredito que você escreveu esse poema. Eu escrevi. Agora, você decorar fórmulas não tem nada a ver com você escrever. Eu estava fazendo o que eu gostava. E eram professores exigentes. Por isso falei que algum valor tinha, porque eram professores que, como meus professores, era difícil tirar nota. Nas análises de trabalhos eles eram super exigentes. Em 1981 nós tivemos Jovens Escritores do ABC II, que era sobre crônicas, e me inscrevi e ganhei de novo. Eles falaram: Algum valor tem. Em 1981 era uma crônica sobre a Oliveira Lima. Tinha um mendigo que existia lá e até falava que se ganhasse ia dar uma parte do prêmio. Depois descobri que o mendigo não era mendigo. Ele tinha um problema físico, não andava, toda aquela performance e um dia fui procurar umas pessoas para saber onde estava o mendigo. E ele não era mendigo. Era só performance, porque chegava no fim do dia ele levantava e ia embora. Mas era um artista. Você chorava quando via o cara, o tipo que ele fazia. Nunca mais o vi. Todo mundo me falou que ele não era mendigo, que ele levantava e ia embora. As pessoas falaram que não era o que estava pensando. Mas ele deu um bom poema, que ganhou um concurso. Em 1982, que eu fiz o quarto ano, acabei o magistério, ajustei todas as minhas DPs, tudo certo, encontrei a Terezinha Sávio, que era uma amiga que encontrei no quarto ano, que topou fazer essa brincadeira com o alternativo. Ela não era poetisa, mas até se arriscou a fazer uns versinhos, e conheci o J. Marin, que hoje é professor da Fundação Santo André; e ele estava no primeiro ano. Por isso que falo que se eu tivesse feito os quatro anos certinhos, teria passado, não encontraria nunca o Marin, que foi um parceiro poético muito forte. Nós fizemos e começamos a distribuir.
Pergunta: Como era o primeiro número?
Resposta:
Era a mimeógrafo a álcool, azul. Eu mesmo fiz o desenho da cigarra tirado de um slide da família, que era muito bonito, era infantil, mas uma coisa que me inspirava muito, a cigarrinha cantando. A gente começou a fazer. Foram 50 números só, porque o mimeógrafo não dá para fazer muitos números. Tinha de fazer uma vez só, e bem feito. Fizemos dois números só, mas o estêncil borrava, você perdia a matriz, tinha de datilografar tudo de novo, aí nós resolvemos mudar para xerox no terceiro número, que foi tudo dentro de 1982. Depois a gente se formou, o Marin continuou na Fundação até o quarto ano, e eu e a Terezinha continuamos fazendo essa brincadeira. Era um jornal literário e a gente distribuía dentro da Fundação. Eu comecei a entrar em contato com a imprensa alternativa. Conheci um ex-aluno da Fundação, que era o Cláudio Feldman, que foi aluno da professora Maria Cecília Queirós, que hoje não sei se ainda está dando aula, que lecionava francês. Foi interessante porque ela me apresentou, depois desses concursos, porque a gente acabou ficando amiga, porque ela era uma das juradas e ela me apresentou esse ex-aluno, porque o Cláudio Feldman já tinha o Jornal da Taturana, que eu não sabia, mas a gente já começou fazendo... Eu comecei a entrar em contato e no jornal dele existiam muitos endereços, porque ele já se correspondia com a imprensa alternativa, eu comecei a mandar e começou a circular isso. Eram trinta cartas por semana. Foi uma coisa que foi crescendo. Numa época a Terezinha acabou se afastando, foi lecionar e foi morar em São Bernardo e acabamos nos distanciando, não na amizade, porque ainda somos amigas até hoje. Eu sempre fui uma pessoa grupal e de trabalhar com outras pessoas. Nunca consegui trabalhar sozinha. Mesmo quando a gente faz um bico sozinho, você precisa ter uma assessoria, pessoas que incentivem, que colaborem para o projeto sair. E eu fiquei fazendo a revista praticamente sozinha, o jornal. Fiz em xerox, mas aí mudei. Em vez de ser tablóide, era dobradinho. Era em formato de revista, tipo um fanzine, como a gente chamava na época. Era um fanzine de poesia. Como existiam fanzine de vários elementos e como nós éramos fãs da poesia, fizemos esse fanzine. E eu comecei a conhecer bastante gente e aquilo foi alimentando a revista. Eu fazia, não dá para fazer muito. Na época eu fazia uma por mês, mas de repente sozinha é muito difícil, principalmente porque o preço do xerox foi subindo e acabou que eu não conseguia levar. Aí fui fazendo de três em três meses, saía quando dava. E parei. As pessoas ficavam perguntando se o jornal tinha saído e você novamente faz. É como um vício. Um dia eu me animava e fazia outra e contatava muita gente.
Pergunta: Que pessoas cultivavam esse gosto, participavam com você? Como foi o desenvolvimento da revista?
Resposta:
Era o pessoal da região e da faculdade. Eu comecei a circular mais pelo correio. Em 1983 eu conheci, tivemos umas discussões em Santo André sobre a política cultural, o que até hoje se discute e nunca se chega ao fim e nunca nos fazemos entender pelos Poderes Públicos e tudo mais. Tivemos uma discussão, juntamos os produtores culturais e nessa discussão a gente acabou conhecendo muita gente, desde teatro, dança, música e acabamos dividindo certos grupos, porque alguns interesses eram de dança ou de teatro e para as discussões nós acabamos nos reunindo, o pessoal de letras formou um grupo e esse grupo acabou não só discutindo a política cultural, mas acabamos discutindo as nossas próprias obras, nosso trabalho de criação, fizemos oficinas entre nós. Essas pessoas também começaram a participar de A Cigarra, acabaram entrando na revista e divulgando a revista também entre os conhecidos delas, os amigos e ela foi crescendo. Sempre de uma forma alternativa e feita do próprio bolso, pelo correio. Nós tínhamos participações, depois de 1983, da Dalila Teles Veras, Cláudio Feldman, das pessoas que freqüentavam o grupo do Espaço, que foi o grupo que nós formamos depois desse encontro de produtores culturais e muita gente muito interessante. Alguns que até depois se mudaram, porque nós formamos um grupo que tinha 16 pessoas no começo.
Pergunta: O Livre Espaço?
Resposta:
Sim. O Livre Espaço partiu dessa reunião de produtores culturais, onde nós discutimos sobre partir de uma censura que aconteceu de alguns poetas, inclusive do Cláudio Feldman, num concurso de São Caetano. Ele tinha algumas palavras que o júri achou que não podiam passar, que era a palavra aborto e mais uma palavra que não lembro. Aquilo foi censurado e a gente fez toda uma movimentação contra a censura poética. E daí nós nos juntamos para discutir tudo isso, que papel tínhamos ali, os produtores culturais nas várias áreas. E o nosso grupo, não sei se por conta de afinidades da poesia mesmo, nós acabamos nos reunindo com mais freqüência e resolvemos fazer um happening poético. Nós nos reunimos num bar, que se chamava Livre Espaço, que era na Rua das Bandeiras, em Santo André, e fizemos exposição. Nós mesmos fizemos nossos próprios cartazes, penduramos poesias para todo lado e foi uma coisa interessante. Era toda quinta-feira, terças e quintas. E aquilo começou a crescer, vieram novos poetas de outros lugares também e uma pessoa que era o diretor do Senac, ali perto do Shopping ABC, viu essa movimentação toda, essa exposição e achou legal e acabou levando esse projeto para o Senac. Só que a gente perguntou o que a gente ia levar para o Senac? Não podemos levar só uma exposição. Nos juntamos e fizemos um projeto que se chamava O Autor/Leitor na Escola, porque a gente ia fazer para os alunos. Esse projeto começou a se transformar, se espalhou e nós começamos a fazer o projeto em várias escolas do ABC e nós assumimos o nome de Livre Espaço, que era o nome do bar. O bar não existe mais, mas o grupo durou 11 anos. Foi muito interessante, porque tinha um fundo didático, porque nós íamos falar dentro de uma escola e a maioria eram professoras, nós acabamos fazendo o projeto. Foi muito interessante. A gente falava sobre o fazer poético, o que era poesia, tirava do pessoal o que eles gostavam de ler e fazíamos uma oficina onde as pessoas podiam escrever os seus poemas também. Era por aí.
Pergunta: Quando o Zô entrou em A Cigarra?
Resposta:
Ele entrou em 1994. Eu o conheci em 1993, ele acabou participando com poemas, trabalhos dele, e eu ia parar, mas aí ele, que é um artista gráfico, e o João Antônio que é designer gráfico de computação acabaram comprando minha idéia, porque A Cigarra já tinha uma tradição, e a gente pode mudar o visual e continuar. Foi o que aconteceu. Eles deram o formato de revista e ela passou a ser revista mesmo. Ela foi feita em off-set e agora temos conseguido fazer em quatro cores. Eles deram uma contribuição, porque às vezes eu sei o que quero, só não sei como fazer, não tenho o know-how das artes gráficas e visuais.
Pergunta: Nós estamos no finalzinho e temos uma pergunta padrão. Tendo em vista essa sua experiência de vida com literatura, trabalho, escola, com A Cigarra, que tipo de mensagem você gostaria de deixar gravada para as pessoas terem acesso, pela sua trajetória?
Resposta:
Eu acho que as pessoas têm de ser mais curiosas, buscar a cultura e não esperar que os Poderes Públicos tragam a cultura. É uma discussão que temos muito. As pessoas têm de ir às bibliotecas, têm de ir procurar a arte, tanto a arte dentro da literatura, arte visual, artes plásticas, o que for. As pessoas têm de ter curiosidade, principalmente os jovens. A gente tem de conhecer um pouco de tudo e não esperar que aquilo venha, porque a arte está em toda parte. As pessoas têm de ter uma curiosidade e vontade de procurar as coisas novas.