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Léia Montanari Braiti viveu sempre em Santo André. Estudou no Primeiro Grupo Escolar da cidade. Entre 1940 e 1946 foi operária em tecelagens. Deixou as fábricas ao se casar com 18 anos. Foi uma das primeiras moradoras, com o marido, na região da Vila Dora, em Santo André. Acompanhou as transformaçoers urbanas da cidade.
IMES – Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul
Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa
Projeto Memórias do ABC
Depoimento de LÉIA MONTANARI BRAITI, 74 anos.
IMES – Centro Universitário de São Caetano do Sul, 10 de julho de 2003.
Entrevistadores: Vilma Lemos e Eleonora Chagas Mendes.
Pergunta:
Dona Léia, qual o local de seu nascimento? Fale um pouco de sua família, do relacionamento.
Resposta:
Nasci na Lapa, mas vim morar em Santo André com quarenta dias. Minha família era meu pai, minha mãe e minhas irmãs – duas irmãs, eu sou a terceira filha do casal, depois eu tive mais quatro irmãos. O relacionamento com meu pai era ótimo. Meu pai foi para Santo André porque a vida estava difícil em São Paulo. Ele fazia sorvete e doces em casa para vender. Ele ia vender no grupo escolar de Santo André e ia vender na matriz quando tinha quermesse, então eu vivi ali até os seis anos de idade.
Pergunta:
Quem ajudava a fazer o sorvete?
Resposta:
Minha mãe, ela virava a máquina à mão.
Pergunta:
Essa receita de sorvete veio de onde?
Resposta:
Acho que já tinha, porque ele foi criado em Amparo, ele nasceu em Amparo, interior paulista. Ele foi criado assim, já sabia fazer doces, isso eu já não sei te contar porque eu era muito menina, mas ele era muito jeitoso para isso, até os seis anos eu morei ali. Depois mudamos para a Vila Assunção, que hoje é uma vila classe A, mas no começo era muito mato, as pessoas iam se curar de tuberculose lá, porque tinha os morros. Quando eu fui lá, com seis anos, as pessoas iam se curar de tuberculose.
Pergunta:
Havia alguma clínica lá?
Resposta:
Não, eu ouvi falar, quando eu era menina, não via as pessoas, mas o ar era tão bom que eles iam se curar de tuberculose. E eu comecei, com sete anos, a fazer o primário que era no centro de Santo André, eu andava meia hora para ir, meia hora para voltar, e fiz até os onze anos. Quando eu tirei o diploma, minha mãe faleceu três meses depois com uma doença contagiosa, ela foi embora em um mês.
Pergunta:
Que doença era essa?
Resposta:
Era tifo. Nós tínhamos a Santa Casa de Misericórdia que hoje é o Hospital Municipal, o doutor quis vê-la, ela passou pela Santa Casa, mas já teve que ficar no isolamento. Ela faleceu e deixou sete filhos. Aí foi mais difícil, meu pai muito sozinho, com quarenta e dois anos apenas, casou-se de novo também com uma senhora, tive madrasta, ela tinha quatro filhos. Eu sei que aos doze anos eu fui trabalhar, as tecelagens estavam pedindo, meu pai tinha conhecimento com o dono da tecelagem, Arquise, eu fui trabalhar para ajudar a sustentar as crianças também. Minha irmã mais velha já trabalhava na Pirelli, ela entrou com onze anos, ela foi a primeira secretária da Pirelli, arrumou emprego para o meu pai lá, então meu pai já foi melhorando de vida também, pelo menos o primeiro emprego dele foi na Pirelli. Eu fiquei até os dezoito anos trabalhando nessa fábrica, ajudando sempre o meu pai, nós dávamos o ordenado fechado na mão dele, mas eu conheci aquele que foi meu marido, eu tinha quatorze anos, na própria tecelagem, ele era tecelão na época e casamos; eu tinha dezoito anos e ele tinha vinte e cinco.
Pergunta:
Que tecelagem era essa?
Resposta:
Tecelagem Arquise, fica na Rua dos Canudos, em Santo André.
Pergunta:
Com doze anos, a mulher, a menina podia trabalhar?
Resposta:
Não, eles pegavam, mas era tudo por baixo do pano, eu não era registrada. Lembro que nós éramos vinte meninas que entramos com doze (anos) e aos quatorze (anos) fomos para São Paulo para fazer o registro. Eu me lembro que nós pegamos o trem e fizemos uma farra, eram todas meninas. Minha adolescência foi ótima, porque éramos vinte meninas e nos conservamos lá até os dezoito anos. Eu já era registrada aos quatorze, mas eu não sei, só sei que meu pai arrumou o emprego, eu fui e não era registrada.
Pergunta:
Que tipo de serviço?
Resposta:
Nós fazíamos serviços com maquinário de espula, quando eu entrei. Os teares eram de cobertores, de pano de colchão e de toalhas de mesa também. Eu fui trabalhar nos teares quando tinha quatorze anos. Aos doze, eu só trabalhava com roca, trabalhava em serviços leves.
Pergunta:
E como era trabalhar com roca? O que é roca?
Resposta:
Roca é como se fosse um novelo de lã, só que ele era durinho, e para fazer o fio do rolo que ia trabalhar no tear, tinha que enfiar cada coisa no lugar, enfiar o fiozinho para trabalhar para fazer o rolo. Seriam cem rocas vamos supor. A máquina era bem comprida, as meninas ficavam fazendo as rocas, as espulas; as espulas eram para trabalhar nos teares. Era tudo feito na fábrica, cada sala tinha o que fazer. Tinha sala que tingia, aquela sala de pano que depois do tecido pronto saindo da máquina você tem que dobrar, você tem que arrematar para ele ir para a venda. Então, tinha tudo isso na fábrica. Eu fiz mais a parte de espula, fui engropadeira. Engropadeira era sentar no tear e amarrar todos aqueles fiozinhos, eram três mil e quinhentos fios, mas a gente pega uma prática que em três horas e meia eu fazia aquilo, para depois eu ser tecelã. Eu fui tecelã mais ou menos com dezesseis anos, porque, trabalhando no tear, você ganhava por metro que você fazia, então ganhava mais também. Como hoje a pessoa comanda um carro, você comanda o tear.
Pergunta:
Como ficavam as mãos trabalhando nesse tipo de serviço?
Resposta:
Não judiava muito das mãos, era mais tecido, mesmo para eu fazer os nozinhos não judiava da mão, trabalhava sentada dentro do tear, que era a engropadeira. Eu fiz de tudo um pouquinho até chegar a ser tecelã.
Pergunta:
Com tanto serviço, sobrou tempo para brincadeira?
Resposta:
Não, não tivemos brincadeiras. Nossas brincadeiras eram na mesa, os comentários das meninas. E eu comecei a sair aos quatorze anos com a minha irmã, que ela era mais velha, comecei a ir aos bailes com ela, mas logo conheci meu marido, dentro da tecelagem, e ele não gostava de baile, então quando eu comecei a dançar, comecei a namorar também, então acabou o baile.
Pergunta:
Ele era tecelão?
Resposta:
Ele era tecelão, depois foi técnico de tecelagem, depois de casado ele fez o curso, já tinha duas filhas quando fez o curso em São Paulo, porque as fábricas de tecelagem em Santo André começaram a diminuir, começaram a ir embora, principalmente para Sorocaba.
Pergunta:
Por quê?
Resposta:
Porque estava diminuindo. Ainda não tinha entrado o automobilismo, porque quando entrou o automobilismo, derrubou de vez mesmo. Eu não sei por que, eu sei que para meu marido poder trabalhar na tecelagem, ele foi trabalhar quinze anos em São Paulo na fábrica Matarazzo, trabalhava com seda, porque ele era técnico, ele podia trabalhar, ele era mestre de tecelagem inclusive. Para formar a aposentadoria dele e não perder esses quinze anos, ele fez esse sacrifício de pegar o trem, ir para São Paulo, fazia às vezes hora extra, para formar os trinta e três anos para se aposentar.
Pergunta:
A senhora ficou quanto tempo trabalhando nessa indústria têxtil?
Resposta:
Até os dezoito anos, até casar. Eu tencionava voltar, voltei mas não deu certo, logo que engravidei passei muito mal, então eu saí e nunca mais fui trabalhar, nunca mais trabalhei; sempre fui dona de casa.
Pergunta:
Trabalhou fora?
Resposta:
Não trabalhei fora mais, não.
Pergunta:
Como era Santo André nessa época, nós estamos em que época?
Resposta:
Que eu estou contando para você? Eu casei em 1946, já na época de 1950 eu já tinha duas filhinhas. Essa época eu não sei se já tinha entrado o automóvel, eu não tenho certeza, porque deu uma mudança quando entrou a fase do automóvel, que deu emprego para muita gente, mecânicos, mas não para o meu marido já aposentado; ele aposentou com quarenta e oito anos. Ele não tinha nem automóvel e nem chegou a ter, foi uma época difícil porque você tinha que viver com o que ganhava. Sabe o que meu marido fez? Nós tínhamos um quintal, ele criava coelho, ele começou a curtir pele dos nossos coelhos. Mas ele começou a receber de fora também as peles, e acabou trabalhando e ganhando um bom dinheirinho sendo um curtidor de peles. Ele era o único do ABC que fazia isso, que era muito artesanal, não tinha muitos maquinários, ele tinha dois maquinários apenas, mas ele achou o que fazer, ele tinha uma horta também e cuidava da horta, do jardim .
Pergunta:
Quem comprava essas peles e para que comprava?
Resposta:
Pessoas que criavam coelhos traziam para nós curtimos. Achavam que iam fazer muita coisa, mas não fizeram porque depois veio o acrílico e ninguém mais se interessou por peles. Eu mesma perdi muitas peles. Quase ninguém comprava, compravam para fazer uma colcha, mas às vezes a pessoa era alérgica e não podia ter colcha de peles. Ele criava coelhos de raça, eram grandes, brancos, lindos, pretos também, tinha mesclados, e comíamos também carne de coelho. Aos domingos, a macarronada era na minha casa, porque vinha minha família, vinham minhas irmãs, e tinha sempre coelho para comer também.
Pergunta:
Essa pele de coelho servia para fazer colchas? Tinha outra utilidade?
Resposta:
Servia para fazer tapetes. Ele curtia também as peles de carneiro que vinham de fora. Quem quisesse tapetes. Mas a pessoa só trazia para ele curtir, depois que pagava para ele curtir, a pele era da pessoa. Mas faziam colchas, na época; eu nunca fiz, mas faziam colchas. Depois veio o acrílico e derrubou as peles. No Rio Grande do Sul parece que tem um pouco, mas não teve vendas, ele não ganhou dinheiro com isso, ele ganhou um pouco curtindo e depois cuidando do quintal, sempre criando coelho, mesmo não curtindo a pele, sempre criando coelho.
Pergunta:
Voltando um pouquinho na época em que a senhora trabalhava na tecelagem, quando a senhora saiu, existia fundo de garantia, décimo terceiro salário? A senhora recebeu esses benefícios?
Resposta:
Não. Eu trabalhei todos esses anos e não fui atrás, eu saí, não fiz nada disso, porque com dezoito anos eu já era maior. Eu podia fazer, não sei, mas acho que era com vinte e um que era maior, eu casei com dezoito e saí, simplesmente eu saí, não fui pedir nada, não fiz nada no escritório, não fui pedir nada.
Pergunta:
Vamos falar da juventude. Bailes, festas.
Resposta:
Eu gostava muito de cinema, e comecei a ir cinema, meu marido não ia. E O Vento Levou, por exemplo, eu ia com a minha irmã, porque eu gostei muito de cinema, sempre gostei. Meu marido me deu uma televisão em 1958, eu estava grávida do terceiro filho, e ele disse: Ela gosta tanto de cinema, então vai se distrair. Pela televisão eu assisti tudo que eu tinha vontade de assistir.
Pergunta:
O que a senhora assistia na televisão?
Resposta:
Eu assistia E O vento levou, Casa Branca, tinha muita chanchada, muita coisa brasileira. Mas eu gostava dos filmes americanos também, eu sempre assisti muita televisão. O Arrelia, quando era aos domingos e eu já tinha minhas crianças. O Arrelia até foi agora há pouco tempo, ele está com noventa e sete anos, se não me engano.
Pergunta:
Essa televisão tinha propaganda?
Resposta:
Eu acho que era Invictos. A primeira televisão acho que era Invictos.
Pergunta:
Entre as novelas...?
Resposta:
Se tinha propaganda? No começo não tinha não, eles passavam muito filme porque não tinha, eu não lembro muito das propagandas, que você está perguntando, não lembro uma que tenha fixado em mim. Eu sei que eram muitos filmes, porque eles não tinham muito o que apresentar.
Pergunta:
Então a senhora viu o homem chegando à Lua pela televisão?
Resposta:
Nossa, e como vi!
Pergunta:
Quando foi? Em 1958 que a senhora ganhou?
Resposta:
Foi em 1958 que eu ganhei.
Pergunta:
Viu, em 1969, o homem chegou à Lua?
Resposta:
Se vi, junto com meus filhos, junto com meu marido, me emocionou bastante, não que eu desacreditei, eu acreditei que o homem chegou à Lua.
Pergunta:
Houve quem não acreditasse?
Resposta:
Houve quem não acreditasse.
Pergunta:
A senhora pulou para a televisão. E o rádio fez parte da sua vida?
Resposta:
Fez parte da minha vida porque eu sempre tive um radinho, eu fazia tudo, quando eu levantava a primeira coisa era o radinho e depois assisti a muito futebol com o meu marido, aprendi a gostar de futebol. Ele nunca aprendeu a gostar de filme, mas eu aprendi a gostar de futebol, porque ele disse que comprou a televisão para mim, mas era para assistir aos jogos também. O radinho sempre, sempre ouvi um radinho, O Direito de nascer passou pelo rádio também, que é uma novela que depois passou também pela televisão também, O Direito de nascer, que foi a coisa mais antiga que eu me lembro. Eu assisti muito, o que hoje é o canal 7, não estou lembrada, mas acho que era o canal 7; Manuel Durans também cheguei a assistir na televisão, cheguei a vê-lo pessoalmente, mas de ir ao teatro, eu nunca fui ao teatro em São Paulo. Quem ia ao teatro era mais quem tinha o seu companheiro, seu marido que ia junto, e precisava ter um poder aquisitivo também para ir. Eu assisti mais em televisão mesmo.
Pergunta:
Como era namorar nessa época?
Resposta:
Eu posso contar o namoro das minhas filhas. Eu namorei um ano escondido. Quando eu tinha quinze anos, meu namorado disse: Eu vou falar com o seu pai porque eu não quero mais namorar escondido.
Pergunta:
E por que namorava escondido?
Resposta:
Porque eu tinha receio do meu pai, mas meu pai foi tão legal comigo, eu não devia ter receio. Ele chegou de surpresa, eu chamei meu pai, ele entrou, foi falar com o meu pai, meu pai gostou demais dele, porque os homens naquele tempo eram mais firmes, eles sabiam o que eles queriam. Eu era muito menina, ele era já um homem feito, quando nós casamos ele tinha vinte e cinco anos e eu tinha dezoito; era uma menina quatorze, quinze anos, mas ele quis e deu certo, graças a Deus, e vivemos cinqüenta e dois anos juntos; fizemos bodas de ouro também.
Pergunta:
A senhora mencionou os almoços na sua casa.
Resposta:
Os almoços eram sempre na minha casa.
Pergunta:
Como era essa reunião, cantava-se, brincava, o que se falava?
Resposta:
Cantava, cantava-se bastante. Minha irmã sempre esteve lá comigo me acompanhando, sempre a base de italianos, que eu sou descendente de italianos. O meu marido não era muito de cantar, mas sabe o que eles faziam depois? Um joguinho de carta. Então, reunia os meus cunhados, porque eu sempre tive muitas irmãs também, depois do almoço vinha o joguinho de carta, depois vinha o café com o bolinho, e eu custei muito para aprender a jogar. Hoje eu sei jogar, mas eu custei muito, porque eu tinha que fazer o bolinho também do jantar e minhas crianças – eu tive quatro filhos, depois os netos também, eles acompanharam. Isso, infelizmente, foi acabando. Meu marido faleceu, meu cunhado faleceu, o outro também mudou-se e foi acabando. Eu fiquei sozinha com meu marido na casa quatro anos, sem os filhos, fiquei quatro anos com ele completamente sozinha, foram esses quatro anos.
Pergunta:
Além do coelho, no domingo, era macarronada que acompanhava?
Resposta:
Sempre macarronada, sempre.
Pergunta:
A massa desse macarrão era feita em casa?
Resposta:
A massa era feita por nós, meu marido me ajudava a fazer. Ele comprou uma maquininha de fazer, hoje ela é toda de inox e nova, mas aquela parecia um ferro, ele ajudava, minha irmã vinha para ajudar. Era feito nhoque em casa também. Nós tínhamos uma horta, e as saladas eram tiradas do meu quintal, regadas com água limpa, eu tinha água encanada onde eu morava.
Pergunta:
A formação da senhora foi até a quarta série?
Resposta:
Apenas até a quarta série.
Pergunta:
Tem alguma atividade, algum aspecto político dentro da sociedade que tenha merecido sua atenção, da qual a senhora se lembre?
Resposta:
Eu tenha uma irmã que inclusive mora em São Caetano, hoje ela está com oitenta e dois anos, é a Olga Montanari de Melo. Ela foi vereadora por dezesseis anos aqui em São Caetano. Pela parte política eu não me interessei muito, eu acompanhei mais a dela, ela que sempre vinha almoçar comigo.
Pergunta:
E quanto a Getúlio Vargas?
Resposta:
Getúlio Vargas. Meu marido gostava muito do Getúlio Vargas. Ele sempre defendia a tese do Getúlio Vargas, e ele ficou muito triste, deixou de votar, quando o Jânio renunciou, mexeu muito com ele, porque ele confiou no Jânio Quadros, e o Jânio renunciou. Ele prometeu que nunca mais votaria para ninguém, e ele anulava o voto dele; ele nunca mais votou para ninguém.
Pergunta:
Sabe dizer por que essa admiração, o que levava a isso?
Resposta:
Eu não lembro muito, eu acho que ia mais atrás da cozinha, das crianças. E ele contava assim para os meus cunhados, eu ouvia ele falando, ele gostava muito do Getúlio, do que o Getúlio fez. Eles falam: Nossas leis foi o Getúlio quem deixou, principalmente as leis que temos até hoje.
Pergunta:
Quando estavam reunidos para esses almoços ou jantares, as mulheres ficavam de um lado e os homens de outro ou ficavam unidos todos juntos? O jogo era conjunto?
Resposta:
O jogo era conjunto, minha irmã sempre jogou com eles, porque eles eram três homens e faltava um homem, então ela fez sempre as vezes.
Pergunta:
Fala um pouquinho da cidade.
Resposta:
A cidade de Santo André que eu conheci, eu lembro muito do Largo do Ipiranguinha, hoje tem um nome, porque tinha a fábrica Ipiranguinha que recebia essas meninas, como eu fui, e eu sei que ela fez casas, construiu casas para os operários dela, que hoje é o Pão de Açúcar. Era uma quadra, era a fábrica Ipiranguinha, tinha o Didone, que era fábrica de tecelagem que era tudo ali no largo, tinha o Tognato que vocês conhecem que é muito famoso, onde meu marido trabalhou muitos anos também e hoje está sendo feito um condomínio de prédios ali. Foi demolido há pouco tempo porque até outro dia ainda era da família Tognato. Eu me lembro um pouco da Rhodia também, que deu muito emprego, inclusive minha irmã trabalhou lá, minha irmã mais velha trabalhou na Pirelli. A Rhodia deu muito emprego para as mulheres, moças de quatorze anos, tinha a Rhodia Química também, tinha a Kowarick que deu muito emprego. É o que eu me lembro das fábricas mais famosas, que foram de Santo André e que na época, eu era menina ainda, deu muito emprego para nós.
Pergunta:
A senhora é descendente de italianos?
Resposta:
Eu sou neta de italiana.
Pergunta:
Conviveu muito? Como era a convivência com a nona?
Resposta:
Minha nona era uma pessoa muito dinâmica para a época dela, ela vinha da Lapa porque ela fazia os partos da minha mãe, mas ela não tinha paciência com as crianças, que éramos nós. Sempre brava, ela, coitada, tinha que cuidar da minha mãe, do bebê, da casa e das criançadas, porque o meu pai ia trabalhar, e era sempre brava com a gente. Um dia ela pediu que nós fôssemos fazer um joguinho, porque ela jogava no bicho e eu morava na Vila Assunção; subimos, eu com minha irmã, mas ela deu o papel por escrito porque ela sabia ler e escrever e fizemos o que ela mandou fazer. Eu sei que não deu certo, ela nos xingou muito de tontolina que hoje nós falamos muito sobre isso, e brava, muito brava, ela me marcou muito, porque eu fiquei muito sentida, ela ficou muito brava comigo, sendo que eu tinha sete aninhos e minha irmã tinha nove. Eu me lembro dela, já não lembro muito mais. Ela viveu até os oitenta e cinco anos, então eu lembro de pegar o trem e ir para a Lapa visitar minhas tias, e de vê-la doente também em uma cama. Ela ficou em uma cama, disso eu lembro. Eu perdi minha mãe, minha mãe tinha quarenta anos, então você se afasta até um pouquinho da família depois. As minhas tias não vinham mais em casa porque não tinham mais a irmã.
Pergunta:
Como eram as roupas que ela usava, não eram as mesmas que as suas?
Resposta:
Não, a minha avó era toda de pretinho mesmo, ela usava tudo preto, ela usava muitas saias por baixo, eu sei que a última era branquinha. E a minha avó era política, ela tinha na última saia dela a foto do Mussolini, e ela falava no Mussolini com muito fervor. Não sei em que ano ela veio da Itália e ela era política na época, ela falava muito italiano, tanto que eu não entendia o que ela falava, mas ela tinha foto, ela levava com ela essa foto grande do Mussolini.
Pergunta:
Não sabe por que ela veio para o Brasil?
Resposta:
Não sei. Eles não comentavam muito. Eu sei que minha mãe nasceu em 1900, então ela veio bem antes, minha mãe não foi a primeira filha dela, acho que foi a quinta filha dela, ela teve uns oito filhos, eu acho que um homem apenas, o restante era tudo mulher, eu convivi mais com a caçula dela, que foi minha tia Luíza, que viveu muito com essa caçula, essa minha tia que ela chegou aos oitenta e seis anos, uma pessoa com a qual eu convivi depois de casada. Mas antes a gente não ia sozinha para São Paulo, apenas lembro que ela vinha fazer os partos da minha mãe e minha mãe teve sete filhos.
Pergunta:
Esses partos foram feitos em casa?
Resposta:
Sempre em casa. Eu nasci com ela também, ela fez todos os partos, ela não era diplomada parteira, mas ela fazia, ela trabalhava com isso, ela era parteira na Lapa.
Pergunta:
Parteira ganhava?
Resposta:
Eu acho que sim. Em casa ela fazia de graça, mas eu acho que ela ganhava sim. Ela disse que ela engomava também muito bem para as pessoas, eu acho que ela morava na Guaicurus. Dizem que ela engomava, eu ouvia a minha mãe contando, que ela era ótima passadeira também, ela engomava não sei se eram roupas de pessoas finas.
Pergunta:
A senhora tem lembranças da ditadura militar de 1964?
Resposta:
Não tenho muita lembrança, a não ser pela televisão, o que a gente ouvia, de pessoas que sumiram. Mais ou menos, não gosto muito de coisa triste por isso.
Pergunta:
E das greves do ABC, dos metalúrgicos?
Resposta:
Das greves também não gostei muito, nem um pouquinho, não gostei.
Pergunta:
A senhora chegou a se aposentar?
Resposta:
Não. Eu saí com dezoito anos e só trabalhei ali aqueles anos. Meu marido, para se aposentar, precisou trabalhar em São Paulo. Ele começou aos quatorze anos e se aposentou com quarenta e oito anos.
Pergunta:
Quantos netos a senhora tem?
Resposta:
Eu tenho nove netos e agora estou sabendo que vou ter o décimo, e tenho já uma bisnetinha de dois anos e meio e já vai nascer o segundo de outro neto. Eu tenho nove netos e tenho dois casados apenas, o restante todo ainda é solteiro, são só três homens e cinco mulheres.
Pergunta:
Como é esse relacionamento?
Resposta:
Eu sou uma avó muito coruja, porque eu ajudei a criar os meus primeiros netos e sempre estive junto com eles; hoje, o que eu fiz por eles, eles fazem por mim. Na doença do meu marido, a minha neta, a segunda neta – porque o primeiro é homem – veio morar comigo para cuidar do avô, e depois continuou comigo, ajudou a fazer a mudança, ficou quase um ano mais comigo. Eles me adoram também, então eu estou muito feliz com os meus netos.
Pergunta:
A senhora disse que morou na Vila Assunção?
Resposta:
Na Vila Assunção, eu morei quando pequena; depois quando eu casei morei na Vila Dora, subindo já é Vila Assunção. Nós somos pioneiros na Vila Dora, eu fui morar lá em 1949, estava grávida da segunda filha, porque meu marido comprou um pequeno terreno e construiu uma casinha, eu vi por exemplo a Casa Publicadora Adventista ser demolida, porque ali foi vendido para o Mappin, hoje shopping ABC. Vi também onde era a casa da fazenda do lugar, que hoje é o Hospital Brasil, também vi crescer porque eu morei ali cinqüenta anos.
Pergunta:
Descreva como era essa casa.
Resposta:
Essa casa da fazenda era um pedaço, ela já estava meio estragada, mas eu me lembro deles demolindo a casa, eu era muito novinha na ocasião quando mudei, depois eles fecharam um pouco para depois construir umas casinhas pequenas, para depois ser demolida para ser o Hospital Brasil, mas eu cheguei a ver, porque em 1949, quando eu fui para lá, estavam sendo loteados os terrenos para vender.
Pergunta:
A senhora viu muita mudança no bairro?
Resposta:
Não, não vi muita mudança. A Vila Assunção não mudou muito até hoje. Eu fazia feira na Rua José Bonifácio, e ela está lá até hoje, acho que essa feira tem mais de setenta anos, chama Rua José Bonifácio. Eu morei em três ruas da Vila Assunção. A primeira, com seis aninhos, morei na Visconde de Mauá, que na frente era só verde, tinha um rio que passava. Esse rio atravessava a Colleoni que hoje é Colleoni, e caía no Rio Tamanduateí, mas depois ali foi tudo construído, hoje formou o meu bairro que era Vila Dora, foi mais ali embaixo perto do Mappin. Eu vi a Pereira Barreto modificar bastante. Na época tinha até um bondinho que ia para São Bernardo.
Pergunta:
Conta essa história do bondinho.
Resposta:
Do bondinho eu vi muito pouco também porque eu era menina, mas o meu marido... Descia um vagão por vez, mas adorei. Só conheci ali Santos mesmo, e passamos um dia só ali. Mas minha irmã casou-se com um fazendeiro que chamava doutor Erasmo Assunção que ele era dono inclusive da Vila Assunção, hoje tem o nome dele na rua, ele tinha fazenda perto, saía da estação de Santo André, era do lado de lá que era a fazenda do doutor Erasmo Assunção e minha irmã casou-se com o filho do capataz, então eu conheci essa fazenda quando era deles. Hoje é tudo da Prefeitura essa parte que nós fizemos. Até a casa da fazenda está como era antes; nós fomos apresentar o teatro da faculdade nessa casa em que eu já vivi quando era pequena, quando era mais nova e hoje não sou mais; depois foi de outro dono, mas era do doutor Erasmo Assunção e hoje ainda eles fizeram a escola regional da criança, dentro tem um bondinho que ainda eles cultivam o que era a fazenda ali, que pertence a Prefeitura de Santo André.
Pergunta:
A senhora falou de uma feira que tem mais de setenta anos?
Resposta:
É, na Rua José Bonifácio, Vila Assunção.
Pergunta:
Essa feira com certeza se alterou. A senhora tem lembrança de como era e como ficou?
Resposta:
Ela era mais simples, depois a Prefeitura pediu que fizessem as barraquinhas todas de listras, bem bonitinhas. Hoje ela é assim, com aquelas barracas, mas tem muitos japoneses. Eu convivi com muitos japoneses também, além de estrangeiros, os japoneses também faziam ali embaixo, onde eu falei para você que passava um riozinho, eles tinham chácaras e a gente ia até lá para comprar as verduras deles.
Pergunta:
Eles punham onde? Se não havia barraquinhas, punham onde? No chão?
Resposta:
Na própria casa deles. Eles tinham a casinha pequenininha deles dentro da chácara; agora na feira não, você tem tudo arrumadinho para você escolher.
Pergunta:
Como era antes?
Resposta:
Antes não era chão, era mesmo aquele cavalete com a tábua. Eu não cheguei a ver feira no chão, não. Eu não cheguei a ver. Depois melhorou e até hoje existe essa feira.
Pergunta:
A senhora disse que conviveu com muitos estrangeiros?
Resposta:
Muitos, mesmo menina com seis anos, na minha rua, que era um pedaço de rua, dentre as minhas amigas tinha alemães, tinha tchecos, tinha portugueses e tinha espanhóis; e quando fui morar na Vila Dora, depois de casada, eu morei muito tempo vizinha com a Dona Blasta, que era uma tcheca também, que veio no tempo da guerra. Eles vieram para cá, ela veio casada com o marido e mais três pessoas que foram trabalhar na Pirelli. Ela foi minha vizinha e cuidava da casa e desses patrícios, como ela chamava, e falava bem pouco português. E tive uma portuguesa. Tive sempre estrangeiros.
Pergunta:
E como era relacionar-se com esse tipo de pessoa?
Resposta:
Eles aprendiam... As meninas, por exemplo, começavam a brincar comigo quando eu era menor, a avó não falava português, mas o pai e a mãe sempre procuravam falar um pouquinho com a gente, e eu gostava do jeito que eles tinham, da cultura deles, o modo de arrumar a mesa principalmente, todos eles. Eles vêm de uma cultura diferente da nossa e eu gostava de conviver com eles, aprendi muito com eles também. Eu sou fácil de aprender, de me relacionar e eu gostava das minhas amigas, de brincar na rua, nós brincávamos muito na rua desde pequenininha, sempre na rua, porque não tinha perigo.
Pergunta:
Eu sei que a senhora faz faculdade da terceira idade, que faz teatro e faz atividade transgeracional, integrando jovens e terceira idade em projetos. Conta um pouquinho dessa fase da sua vida hoje.
Resposta:
A faculdade, que minha neta me incentivou a fazer, foi a melhor coisa que podia me acontecer, é na UniA. Você entra, você não sabe o que vai encontrar lá, muitas me encontram e dizem assim: O que você faz lá? Eu faço um pouco de tudo. Nós temos uma coordenadora, então de segunda-feira nós fazemos dança e fazemos teatro; às terças-feiras você já tem outras coisas; inclusive até psicóloga nós temos, temos palestras, temos textos que nós tivemos que aprender a fazer também e tem o coral. No coral você não é obrigada a ir, você vai se quiser, o coral é só uma vez por semana e depois que eu recebi o diploma, depois de dois anos eu entrei no coral, e nós apresentamos o nosso coral, em algum lugar; se somos convidados, nós vamos. Gosto demais do coral e nós cantamos. A professora é ótima também, aliás todos eles são, e eu optei também pelo teatro depois que tirei o diploma. Já fazia teatro, mas eu quis fazer um pouco mais, só uma vez por semana e é fora dos horários da faculdade, é horário à tarde, mas de quarta-feira não tem aula, só para nós. Foi um aprendizado muito grande fazer teatro, eu gostei demais também. Eu contei a historinha dessa minha avó e assim nós vamos crescendo e foi contando historinha. Ele formou o teatro e apresentamos duas vezes em Santo André, vamos ver se vamos ter convite para apresentar a nossa peça.
Pergunta:
Qual é o nome da peça?
Resposta:
A peça é assim As Senhoras do Tempo.
Pergunta:
E conta o que essa peça?
Resposta:
Nessa peça ele tirou um pouquinho de cada uma de nós, começa com as histórias das avós. A história toda conta de uma casa da fazenda que vai ser vendida, só que tem muitas brigas, porque nós somos só mulheres, não tem homens na história e tem aquela que não quer vender, tem aquela que se casou com o primo, que é uma judia, ela vem e também quer a herança dessa casa. Todos estão interessados na herança da casa, tem aquela que é muda, que não fala, mas aí no final apareceu um filho homem que era do patrão da fazenda com a empregada, mas nós não sabíamos disso, nós não sabíamos que nós tínhamos um irmão homem. Mas conta a história, essa empregada está viva ainda e ela vem e conta para nós que nós não temos direito a nada porque nós estamos todas mortas e o único que está vivo é o filho dela, é o filho que tem direito à casa; a herança ficou toda para o filho. Eu diminuí bem, mas tem uma hora e meia de teatro.
Pergunta:
Isso é teatro interativo que vocês fazem?
Resposta:
Eu acho que é interativo que você fala, acho que sim. É criado ali mesmo dentro da faculdade. O que nós contamos, o que nós tiramos.
Pergunta:
A senhora tem alguma lembrança da Segunda Guerra? A senhora conviveu?
Resposta:
Eu tenho. A lembrança que eu tenho é que nós trabalhamos muito na Segunda Guerra, porque tinha a guerra, eu passei pela guerra dos anos 40, eu tinha doze anos nos anos 40 e o que eu me lembro mais é disso, muito trabalho, muito trabalho. Não acompanhei muito também, eu sei que meu marido tinha um irmão que foi pracinha, que foi para a guerra, depois ele foi o primeiro, aí veio a Via Anchieta. Eu lembro também quando foi inaugurada a Via Anchieta e esse meu cunhado foi o primeiro Guarda Rodoviário de Santo André. Foi o primeiro que passou a comandar a Via Anchieta. Eu lembro da Via Anchieta, que não tinha sido inaugurada, ele já morava ali, eu lembro disso e que depois nós passamos a usar a Via Anchieta para ir para Santos. Usamos bastante a Via Anchieta, não usamos mais o trem.
Pergunta:
E os japoneses, que a senhora mencionou, como eram? Eram imigrantes?
Resposta:
Eles deviam ser imigrantes, os japoneses quase não falam muito. Deviam ser imigrantes e vieram morar aqui em Santo André.
Pergunta:
E viviam do quê?
Resposta:
Viviam do que eles plantavam e não tinham família muito grande, isso que eu lembro. Hoje em dia não tem nem a chácara dos japoneses. E lembro desse hospital, que hoje é o Hospital Municipal, é a Santa Casa. Lembro-me daquele hospital estadual que ficou vinte anos parado e que agora foi inaugurado, quando o Covas esteve aqui, agora há pouco tempo que abriu, ele conseguiu, ficou vinte anos fechado, estava sendo roubado o que foi construído e agora nós temos um Hospital Municipal e um Hospital Estadual.
Pergunta:
A senhora falou do Carlos Gomes. Conta um pouco para a gente o que significou para a senhora.
Resposta:
No tempo do carnaval, por exemplo, nós tínhamos um curso na Senador Fláquer, Oliveira Lima e no Carlos Gomes. Eles entravam depois, então o carnaval era dentro do Carlos Gomes. E eu me lembro que eu me fantasiei, aos doze anos. Eu me lembro muito do Carlos Gomes que tinha freezer, lembro da festa que tinha, em cima era o Clube Atlético Rhodia que foi onde eu dancei, com quatorze anos. Era o Clube Atlético Rhodia, todas aquelas moças que trabalhavam na Rhodia freqüentavam esse clube e também a classe A freqüentava, então era muito gostoso dançar aquelas músicas de todos aqueles cantores antigos, que eu aproveitei um pouquinho e depois não deu para aproveitar mais.
Pergunta:
Seus amigos japoneses, alemães, sofreram alguma pressão por ocasião da guerra aqui no Brasil? Perseguições?
Resposta:
Não lembro me de eles contarem isso, não lembro, nunca falaram para mim sobre isso. Em 1964 teve alguma coisa sobre isso também.
Pergunta:
Estou me referindo à guerra, aos que vieram.
Resposta:
Os que vieram da guerra de 40 para cá? Não, não, eles não comentavam, nunca comentaram nada. Só essa tcheca que morou comigo que andou dois dias e duas noites para poder fugir para vir para o Brasil.
Pergunta:
Da Tchecoslováquia?
Resposta:
Da Tchecoslováquia, só isso que ela contou, ela falava meio atrapalhado, mas eu entendia bem.
Pergunta:
Eu gostaria de saber o que a senhora quer deixar registrado, como depoimento, para os jovens, para as futuras gerações, para os netos da senhora, uma mensagem.
Resposta:
Eu devia ter preparado essa mensagem. Eu acho que meu depoimento já serve para eles, para os jovens, porque a vida não é fácil para ninguém, e a gente deve ir à luta sempre e sempre confiar. Isso é que eu passo para os jovens.