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Emília Pegoraro Barreiro Fernandes chegou em Santo André aos 11 anos, estabelecendo-se no Bairro de Santa Terezinha. Trabalhou na Indústria Rhodia Ceta na década de 1940, como tecelã.
PROJETO MEMÓRIAS DO ABC
Depoimento de EMÍLIA PEGORARO BARREIRO FERNANDES, 79 anos.
IMES - Universidade de São Caetano do Sul, 31 de julho de 2003.
Entrevistadores: Vilma Lemos, Priscila Perazzo e Eleonora Chagas Mendes.
Pergunta:
Para começar, precisamos da data do seu nascimento e você pode contar um pouquinho da sua infância.
Resposta:
Minha infância foi uma beleza. A data é dia 1º de maio de 1924.
Pergunta:
Onde a senhora nasceu?
Resposta:
Em Socorro, numa fazenda que era uma beleza. Lá eu comecei no primário. Depois meu pai, no tempo que o Getúlio, mandou queimar café. Meu pai disse assim: Eu não vou mais trabalhar aqui para ... (eu não vou falar né!). E veio para Santo André, alugar uma casa em Santa Terezinha, e nos viemos para cá.
Pergunta:
A senhora tinha quantos anos?
Resposta:
Onze anos.
Pergunta:
Nessa fazenda, seu pai era colono?
Resposta:
Não, o meu avô era dono da fazenda de cima e meu pai, da fazenda de baixo.
Pergunta:
Então ele era fazendeiro?
Resposta:
Era, e o café foi tudo queimado. Eu sei que a mãe de Getúlio deve até ter virado no túmulo dela.
Pergunta:
Então seu pai pegou toda aquela decadência, aquela crise que teve nos Estados Unidos, a guerra, tinha seis, sete anos então?
Resposta:
Essa eu peguei bem. Eu sei que ainda doei sangue para os soldados e depois tiraram meio litro de sangue de todo mundo, mas agora é que eu vejo como são as coisas. O negócio. E depois ainda esconderam, tudo menina nova trabalhando lá e tirarem sangue daquele jeito.
Pergunta:
Como eram as coisas, as seringas para tirar sangue?
Resposta:
São essas coisas, estas seringas deste tamanho, e tiraram sangue para valer mesmo. Quando a diretora chegou, aí a mulher ficou louca.
Pergunta:
Onde a senhora estava? Na escola?
Resposta:
Não, trabalhando.
Pergunta:
E onde era?
Resposta:
Na Rhodia.
Pergunta:
Na parte têxtil da Rhodia?
Resposta:
Não, eu entrei lá para trabalhar na miadeira, que fazia, enrolava os tecidos, não vou explicar porque é muito complicado, precisava ver. Fazia os fios, depois ia para outros lugares para fazer camisola, para outras coisas, e a Valisère era ao lado da Rhodia, a Rhodia era ao lado da Valisère.
Pergunta:
A senhora trabalhava na Rhodia?
Resposta:
Depois dessa, eu tinha acabado de entrar, foi aí que fui levada para o escritório onde fiquei por seis ou sete anos ou mais, não me lembro.
Pergunta:
Lá em Socorro, a senhora estudou, foi à escola?
Resposta:
Fiz o primário, meu pai tinha professora.
Pergunta:
E as crianças, os filhos de colonos e fazendeiros iam todos juntos?
Resposta:
Sim. Eu era filha de quem não sabia, eu sabia que tinha gente para eu brincar, era o que eu queria, não queria nem saber, tive uma infância maravilhosa.
Pergunta:
O que vocês faziam na fazenda? Conta para a gente como eram os animais.
Resposta:
Plantação de café, mandioca, tinha animal para tudo quanto era canto, tinha ganso, tinha um rio, e o que tinha de ganso não era brincadeira, um mais lindo que o outro, e a gente se divertia com aquilo. Quando ninguém ficava olhando, porque se passasse dos limites a gente apanhava. Não brinca, o negócio era feio.
Pergunta:
A senhora tinha irmãos?
Resposta:
Doze irmãos. Meu pai casou e teve quatro filhos com a primeira mulher, a primeira esposa dele faleceu, ele casou-se com a minha mãe, eu sou a mais velha e ainda vieram mais oito. Deveria ter trazido fotografia.
Eu convido todas essas comilonas a irem em casa para ver. Eu tive uma infância maravilhosa, eu fiz o primário, o segundo e o terceiro ano, depois o quarto e o quinto eu vim fazer aqui no grupo em Santo André.
Pergunta:
Por que o seu pai escolheu Santo André, Dona Emília, para vir embora?
Resposta:
Por que Santo André era conhecido até na China.
Pergunta:
Famoso como?
Resposta:
Famoso! Isso aqui era uma beleza. Morar em Santo André... Tinha poucas casas, porque quando vim para cá, precisava tomar cuidado com os bois que fugiam do matadouro do Martinele, não era a Swift ainda, era um matadouro, e os bois ficavam nos trens, naqueles vagões, quando eles fugiam, eles entravam na casa de todo mundo. Era um tal de correr dos bois, era divertido. Agora as crianças não têm mais nada disso.
Pergunta:
Quando vocês vieram para Santo André, foram morar em Santa Terezinha?
Resposta:
Em Santa Terezinha. Vocês já ouviram falar da Fazenda da Juta? Tinha uma casa de um homem, ele construiu uma casa enorme, porque tinha muita gente tuberculosa. Ele veio fazer um hospital, ele era médico, depois que a casa estava pronta ele morreu. Era um casal sozinho, a mulher pegou e foi embora, meu avô veio na frente para fazer uns negócios primeiro para o meu pai, para depois a gente vir, porque era muita gente e meu pai comprou a casa.
Pergunta:
Seus pais, dona Emília, eram imigrantes, eram descendentes?
Resposta:
Eram os meus avós, meu pai era brasileiro, acho que ele foi feito no navio, porque quando ele chegou, logo nasceu.
Pergunta:
E qual era a nacionalidade dos seus avós?
Resposta:
Italianos, tute esbrufuleto! Mas era divertido.
Pergunta:
E quando seu pai teve que sair de Socorro, queimar o café?
Resposta:
Vendeu tudo!
Pergunta:
Veio com dinheiro ou sem dinheiro?
Resposta:
Veio com uma caixa de dinheiro.
Pergunta:
Não usava banco naquela época?
Resposta:
Não, o banco mesmo era o dono do dinheiro.
Pergunta:
E vocês vieram de trem?
Resposta:
Viemos de trem. Nunca tínhamos andado de trem e dentro do trem era gostoso.
Pergunta:
E como era o caminho? Onde pegava o trem? Como chegava?
Resposta:
Aí é que está o negócio, porque a fazenda era na divisa de Minas e nós viemos para Socorro um dia antes para pegar o trem no outro dia para vir para Santo André. Aí veio tudo o que tinha direito no trem, veio rosca, pão, saco de roca, tudo o que tinha direito no trem. Quando chegou na estação da Luz, a gente olhava, aquilo era uma beleza, na época era bonito, eu fiquei encantada, era isso o que eu queria!
Pergunta:
A senhora queria sair do interior?
Resposta:
Não, é que o meu pai sofria muito lá viu, meu avô veio embora antes e meu avô e minha avó não ficavam sem meu pai junto. Foram mais eles que trouxeram. Eu não ia ficar lá para carpir, casar lá com um besta, igual às minhas primas todas, que depois começaram lá e só guardam dinheiro, nem gastam o dinheiro.
Eu falei do canhão. No tempo da revolução os mineiros passavam por cima, tinha uma estrada e eles passavam e no fim eles levavam canhão, mas quando a gente ouvia falar que vinha mineiro, não quero ofender ninguém, mas eles eram tristes, e eles entravam e acabavam com a vida das pessoas. Como a minha família era muito grande, eu deveria ter trazido a fotografia do meu pai. Meu pai ia levar comida para os soldados paulistas, sempre dois soldados; ele ia com o caminhão e com tudo a que tinha direito, o meu pai ia com os soldados atrás para os mineiros não roubarem a comida. Olha só que situação.
Pergunta:
Ia dar comida para os soldados paulistas?
Resposta:
É, e eles ficavam doidos. Era tudo o que se podia ter, a minha mãe fazia tudo aquelas comidas caipiras, a carne durava uma semana, duas, fazia aquelas carnes e colocava lá dentro onde fazia o vinho, e já que não tinha vinho ia a carne mesmo, era gostoso, mas não foi gostosa a guerra. Os mineiros iam levando o canhão e quebrou, puseram debaixo do pé de café. Eu e meus irmãos éramos bonzinhos, todos bonzinhos. O que é isso? Não sei, é de mineiro. Se for de mineiro, a gente não pode pegar. Fomos jogar fora. E tinha um irmão que era meio maluco, pegamos o canhão, eu e os meus irmãos, e fomos rodando o canhão até o monjolo. Monjolo é o que batia o café, punha o arroz e tirava a casca, o monjolo servia para tudo e tinha um rio feio, se caísse lá... Aí nós jogamos o canhão dentro do rio, e a gente não sabia que ia explodir, não sabia nada mesmo. Quando deu a explosão, o canhão... E quando os meus irmãos iam carregando, eu só mandava. Você olha direito! Eu só mandava. Enfim, eu disse para não ir muito perto, se não iriam cair dentro do rio, aí o pai matava todo mundo. Tinha o Eron, da primeira mulher do meu pai, ele era doido, ele era louco para fazer as coisas erradas, jogou o canhão dentro. Eu não, porque eu só mandava e dizia: Vai para lá. Eu tinha uns oito anos, nem isso, nem me lembro mais, quando o canhão caiu dentro do buraco, arrancou até o rabo do monjolo. Aí nós apanhamos.
Pergunta:
Quando terminou a guerra, a senhora já estava morando em Santo André?
Resposta:
A guerra feia, eu já estava.
Pergunta:
E como era a vida aqui?
Resposta:
Levantava cedo, ia até a estação para compras açúcar, farinha, era dado tudo de pouco, mas como o meu pai tinha família grande, tinha o Mário Setti, então para o meu pai tinha mais; a gente comprava mais para dar aos outros que não tinham. Até isso nós fizemos.
Pergunta:
Vocês moravam em Santa Terezinha e tinham que ir até a estação?
Resposta:
Mas era pertinho, tinha jardineira, o pai dava dinheiro, mas a gente guardava para depois ir ao cinema.
Pergunta:
Vocês atravessavam o Rio Tamanduateí ali?
Resposta:
Tinha uma pequena ponte perto da Rhodia química, tinha um pequeno rio, passava até carro ali. Quando a ponte quebrava, caía todo mundo dentro do rio e era divertido. A gente vinha cedo e como tinha muito italiano, muita gente, tinha tudo quanto era raça de gente, o mundo inteiro morava em Santa Terezinha, mas era uma gostosura. A gente pegava as coisas a mais para levar para eles. Japonês então, no tempo da revolução na casa onde a gente morava, tinha um porão grande , já contei isso para você.
Pergunta:
Isso lá em Socorro?
Resposta:
É, a polícia lá chegava, a polícia vem vindo... Não! Isso foi aqui, tinha a fazenda da Juta, era só japonês, e os japoneses, pegaram um rádio lá, coitados dos japoneses..., e então meu pai ficava de olho quando avisavam. Senhor João, a polícia vai baixar lá na Fazenda da Juta. Aí desciam todos os japoneses e dormiam tudo dentro do porão. Era gostoso.
Pergunta:
Para se proteger?
Resposta:
Gostoso. Agora eu encontro um japonês: Você não era filha do Pegoraro? Falo: Era. Porque o meu pai morreu. Era divertido no bom sentido, porque foi uma coisa triste.
Pergunta:
A senhora lembra de acontecer só com os japoneses ou acontecia com os italianos?
Resposta:
Com os italianos também. Com meu pai não, porque meu pai tinha amigos na policia, mas o que quebraram e entravam nas casa dos italianos... Santa Terezinha nunca teve. Isso foi só na Fazenda da Juta e os japoneses, coitados, tinham tudo que fugir e os coitados não podiam nem chorar. Pôr dentro da casa não dava, porque a polícia fazia vistoria na casa do meu pai também, mas chegavam, olhavam e não tinha nada; e os japoneses todos lá embaixo no porão. Coitados.
Pergunta:
A polícia nunca pegou os japoneses na sua casa?
Resposta:
Não pegaram porque acho que não quiseram. Os japoneses. A gente dizia não chora, não podia chorar. Os meninos sabiam entender um pouco mais, mas os japoneses mais velhos não sabiam falar um "a". Era duro, mas a gente pegava e cutucava, eles desciam feito carneirinho. Que judiação! Eles iam até a Fazenda da Juta, quando chegavam lá e não encontravam ninguém, eles ficavam doidos, mas era a polícia que vinha lá de São Paulo, a de Santo André não, porque, meu pai italiano sofreu muito.
Pergunta:
A senhora chegou a conhecer algum alemão?
Resposta:
Em Santa Terezinha morava tudo quanto era raça que vinha do mundo todo.
Pergunta:
Então tinha alemães também?
Resposta:
Você precisava ver o meu avô ensinar uma família de alemães a falar português. Era divertido. Não era divertido, era triste, mas foi uma infância gostosa. E depois, isso foi aqui, acabou a história do japonês.
Pergunta:
Se a senhora já contou tudo o que queria contar.
Resposta:
Não. Já falei. Agora todo mundo sofria no tempo da revolução, sofria por causa dos mineiros, os comandantes deles mandavam matar os paulistas; disse que os paulistas não prestavam. Tinha um moço que estava morrendo, baleado, não sei, então o jogaram no meio do mato. O meu pai viu, chegou e disse para a minha mãe (o nome da minha mãe era Ilba, mas como ninguém sabia falar Ilba, falava Hebe): Hebe, olha, tem um moço lá. A minha mãe e a italianada toda ficaram com dó do coitadinho e o coitadinho... O que é que é eu estava falando! Pegaram o mineiro e trouxeram o mineiro para dentro de casa, esconderam o mineiro e cuidaram dele. Tinha muito italiano lá em Socorro, então a mulherada pegava o mineiro, que estava morrendo, quando a polícia baixava, pegava o mineiro e punha dentro, colocava uns paus, e punha ele dentro de uma pedra. Quando chegavam os mineiros, a gente corria lá para aquele lugar. Era do tamanho disso aqui, tinha fogão à lenha e tinha tudo mais. Eu já dormi debaixo de casa de pedra.
Pergunta:
Dona Emília, aqui em Santo André a senhora continuou os seus estudos?
Resposta:
Foi.
Pergunta:
Onde era?
Resposta:
Eu fui para onde hoje é o museu, na Senador Fláquer.
Pergunta:
No primeiro grupo?
Resposta:
Sim, no primeiro grupo, primeiro grupo ainda é do mesmo jeito.
Pergunta:
E como era lá?
Resposta:
Era uma beleza! As professoras eram diferentes de agora, elas iam, pegavam na mão da gente e levavam a gente para a sala de aula. Agora não, agora entra que nem uma turma de cavalo que ninguém entende mais nada, mas era gostoso.
Pergunta:
A senhora fez que série lá? A senhora se lembra?
Resposta:
Fiz até a quarta série apenas.
Pergunta:
Depois a senhora parou de estudar ou foi estudar em outro lugar?
Resposta:
Estudar. Eu gostava é de namorar.
Pergunta:
Então conta um pouquinho dos namoricos.
Resposta:
Mas eu namorei um apenas e casei, depois não tem nem graça viu. O meu marido era a cara da Heleni.
Pergunta:
Como a senhora o conheceu?
Resposta:
Ele veio perdido não sei de onde, o pai dele tinha negócio em Santa Terezinha, vieram para Santo André e foram para Santa Terezinha e abriram um negócio, foi aí que eu o conheci.
Pergunta:
Negócio do quê?
Resposta:
Bar, sorveteria; ninguém nem sabia o que era sorvete no palito e meu sogro já veio com isso.
Pergunta:
A senhora foi trabalhar na Rhodia como e com quantos anos? Já era mocinha?
Resposta:
A dona Ita, era uma italianona que tomava conta, quando a gente chegava assim, ela procurava em casa, ela olhava bem, gostava e já estava tudo empregado.
Pergunta:
A senhora foi chamada em casa?
Resposta:
Ela foi lá e falou, meu pai não queria, porque ele era desses homens atrasados mesmo, e filha, principalmente mulher, tinha que ficar junto da mãe. Eu peguei e fui trabalhar, o deixei e não voltei mais para a escola, também não estou nem aí.
Pergunta:
A senhora ficou quanto tempo na Rhodia?
Resposta:
Eu entrei lá com quinze anos e só saí para casar.
Pergunta:
Com quantos anos a senhora se casou?
Resposta:
Eu me casei com dezenove anos; acho que era dezenove, nem lembro mais.
Pergunta:
E por que a senhora, quando se casou, deixou de trabalhar?
Resposta:
Porque se tivessem alguns tostões a mais, a mulher não trabalhava, era feio, não trabalhava de jeito nenhum.
Pergunta:
E a senhora parou de trabalhar?
Resposta:
Porque minha sogra disse: Você não vai mais trabalhar, minha filha. Filho único e ainda eles estavam bem de situação, não era permitido, falavam para o meu pai que não era para a gente trabalhar. Meu pai dizia: Porco Dio, eu não quero que as meninas trabalhem! Ma que, quando ele via a gente já estava empregada.
Pergunta:
A senhora deixou de trabalhar a contragosto, ou a senhora concordou tranqüilamente?
Resposta:
Tive que concordar. Eu disse: Eu não sei mais o que eu faço! Minha sogra disse: Não vai mais trabalhar!
Pergunta:
O seu marido trabalhava em quê?
Resposta:
Por incrível que pareça era advogado.
Pergunta:
Já naquela época? Ele fez faculdade?
Resposta:
Fez. Você foi lá em casa, mas eu esqueci de mostrar o quadro.
Pergunta:
Ele fez a faculdade de direito em São Paulo?
Resposta:
Não, foi na Bahia, depois ele fez o resto aqui em São Paulo, tinha que fazer.
Pergunta:
E vocês viviam bem?
Resposta:
Aos trancos e barrancos, mas tudo bem.
Pergunta:
Financeiramente, ele sustentava a família?
Resposta:
Não, era o meu sogro que sustentava, meu marido era filho único.
Pergunta:
A senhora morava com a sua sogra?
Resposta:
Morreram os dois comigo, o meu sogro e a minha sogra. São duas criaturas que eu não esqueço, mas eu os adorava, me chamavam filha, não Emília.
Pergunta:
Depois de casada, a senhora continuou morando em Santa Terezinha ou foi morar no centro de Santo André?
Resposta:
Morei ainda em Santa Terezinha bastante tampo, depois dos meninos, a Heleni já queria ir ao colégio, porque Santa Terezinha tinha só o primário. E aí o Hugo já estava no ginásio Duque de Caixas, meu marido não deixava também, porque a escola era fraca então não ia estudar em Santo André, e eu ficava desesperada, e vinham de ônibus. A jardineira passava, eu os punha nos ônibus e eles desciam, mas eles tinham medo. Aí eu fui morar numa casa que parecia um palácio da rainha da Inglaterra, só limpava a casa, cuidava das crianças, e saía correndo para buscar as crianças. A Heleni estava no colégio das freiras, aquela doidona estudou no colégio das freiras; o Hugo, no Duque de Caxias; a Heleni também depois foi para o colégio das freiras. Agora o marido dela, que era o menor, quando começou a ir para a escola também... Eu larguei a casa de doido, porque era uma casa de doido aquilo.
Pergunta:
Mas por quê, Dona Emilia?
Resposta:
Porque era uma casa tão grande.
Pergunta:
Aonde era essa casa?
Resposta:
Em Santa Teresinha. Eu continuei morando lá, me deu a louca, eu vim para Santo André, nunca mais voltei para lá. Vendi a casa e não quis nem saber.
Pergunta:
A casa existe ainda?
Resposta:
Se existe! Você não a viu?
Pergunta:
Depois que a senhora veio para Santo André, onde a senhora morou?
Resposta:
No centro. Eu vi construir o fórum de Santo André.
Pergunta:
Ali no Paço?
Resposta:
No paço! O Paço veio depois de muito tempo.
Pergunta:
Onde era então?
Resposta:
Na Cesário Mota. Era lá o Fórum. Ali os meus filhos tiveram uma infância linda demais. A vizinhança maravilhosa. Eu tenho amizade ali de não sei quantos anos e ainda a gente continua se encontrando.
Pergunta:
Dona Emilia, a Heleni nos contou que teve um período que o seu marido acabou sendo preso, teve um problema. Como a senhora viveu nessa época?
Resposta:
Mas também ele era louco! Como é que fala? Ele queria ir embora, quase que a Heleni nasce na Argentina; eu estava grávida da Heleni. Mas também andou fugindo, nunca chegou a ser preso porque tinha sempre um lugar para ele se esconder.
Pergunta:
A polícia ia atrás por coisas políticas?
Resposta:
Tudo por causa da política.
Pergunta:
Ele era contra Getúlio?
Resposta:
Contra! Até eu sou contra Getúlio. Se tivesse como chegar perto da cara dele e dar um tiro naquele baixinho de merda. No dia que eu fui entregar as flores para a mulher dele, eu devia dar um murro na cara dele.
Pergunta:
A senhora foi entregar flores para a mulher de Getúlio? Por quê?
Resposta:
Eles foram a Santo André, não sei se foi para visitar ou ver se tinha dinheiro, se as firmas estavam bem para arrancar dinheiro, e ele me escolheu para dar flor para a mulher do Getúlio. Eu já tinha ódio do Getúlio porque, meu pai, falava (não posso falar nome feio), eu não eu não vou falar, meu pai dizia esse baixinho e dizia. Tinha a fotografia dele em tudo quanto era canto o meu pai tinha o comércio também, tinha que ter a fotografia, quando passava a fiscalização, pegava um pano tudo de sujo e cobria a cara do Getúlio, até isso. Mas aquela fase foi dura, mas passou. Ninguém o pegou, nem a ele nem a mim, porque eu também não saía mais de casa, com medo das crianças porque vinham os assassinos lá do Rio e matavam tudo.
Pergunta:
Do Rio?
Resposta:
Do Rio. Você não viu em São Paulo, como é o Miragaia? Você que conhece bem a história, aqueles moços que foram mortos.
Pergunta:
No centro de São Paulo, em 1932?
Resposta:
Não, não. O meu marido ainda estava há muito morando em São Paulo.
Pergunta:
Em que ano a senhora se casou?
Reposta:
Menina, faz tanto tampo que eu nem me lembro mais, te juro que não me lembro.
Pergunta :
Como eram os bailes nessa época?
Resposta:
Os bailes não eram nada... Bonitos eram os carnavais de Santo André.
Pergunta:
Conte para a gente?
Resposta:
O carnaval de Santo André era conhecido no mundo inteiro, agora dizem que São Caetano é não sei o quê. Isso aqui era tudo Santo André, mas o carnaval de Santo André era a coisa mais linda do mundo.
Pergunta:
A senhor se lembra de quais eram os grupos que saíam?
Resposta;
Era Ocara e Panelinha, e depois começaram outros.
Teve até um carnaval que foi filmado para fazer um filme. A mulher do Sergio Apolônio, ela só assim (balança a cabeça), parece uma vaquinha de presépio. Mas eram bonitos. E o Primeiro de Maio. Meu pai dizia: Hoje é dia de Santo André, está fazendo festa para você. As ruas eram cheias de flores, tinha desfile, você tinha que ver que coisa mais linda que era Santo André. Santo André era pequena, não tinha muita coisa, mas era bonito, e depois foi acabando tudo.
Pergunta:
No aniversário da cidade também tinha desfile?
Resposta:
Agora passa e eu nem vejo, ninguém vê, ninguém fala, soltam uns rojões lá e pronto. Veja que coisa!
Pergunta:
Dona Emília, depois que a senhora trabalhou na Rhodia, trabalhou em algum outro lugar?
Resposta:
Não, não. Eu sempre fiquei em casa e depois tive tanta sorte. Morreu minha sogra, e eu já estava com dois filhos, estava para nascer o segundo, ficou meu sogro, depois morreu meu sogro e acabou.
Pergunta:
Dona Emília, as meninas comentavam que por um período da sua vida a senhora se separou do seu marido. É verdade?
Resposta:
Eu meti o pé.
Pergunta:
Como foi viver sem marido naquela época?
Resposta:
Eu voltei a trabalhar. Eu esqueci! Eu voltei a trabalhar, menina! Meti o pé. Onde é a Vila Gerty, a nega dele morava ali. Meti o pé no bicho! Meti o pé e falei: Vagabundo. Tirei tudo o que ele tinha, e falei: Você vai se sustentar. E ainda fui no Juiz. Meti o pé nele e ficou um ano fora de casa .
Pergunta:
E como foi para a senhora? Como a senhora viveu naquela época sem marido? Quais dificuldades foram enfrentadas? Como a senhora se sustentou?
Resposta:
Voltei a trabalhar, fui trabalhar na Valisère! Da Rhodia, eu pulei para a Valisère.
Pergunta:
E como era o trabalho da senhora lá na Valesère?
Resposta:
Era arrumar. Vocês chegaram a conhecer as roupas, as camisolas? Então, eu que verificava tudo aquilo.
Pergunta:
A senhora fazia o controle de qualidade?
Resposta:
Eu e uma outra, eu e minha irmã, a Ana. Eu trabalhei lá um ano, depois o homem cansou.
Pergunta:
Enquanto a senhora estava separada, sentiu que as pessoas tratavam a senhora diferente, por causa de a senhora ser separada?
Resposta:
Olha! As amizades que eu tinha continuaram, nunca ninguém falou nada, nunca ninguém me desrespeitou, porque os cachorros estavam tudo solto. Os cachorros eram meus irmãos. Se um falasse, não precisava nem falar, era só olhar, o pau comia mesmo, aí nem a polícia parava a briga.
Pergunta:
Então a senhora era brava?
Resposta:
Eu não sou boazinha, o que eu me diverti. Depois de um ano que ele ficou fora, ele pensou. Tirei tudo o que ele tinha, ele só levou a roupa do corpo, tirei até o ordenado dele inteiro, tirei casa, dinheiro, tirei tudo! Depois de um ano, ele voltou! Depois de seis anos ele morreu.
Pergunta:
E depois que seu marido faleceu, como foi para a senhora? Seus filhos eram adultos ou ainda eram crianças?
Resposta:
O meu filho já trabalhava na Antártica.
Pergunta:
Como foi a vida de viúva?
Resposta:
Ah... Foi uma maravilha! Eu falava, a vaquinha de presépio que só faz assim, ela sabe como eu cuidava dos meus filhos. Era uma beleza, uma beleza! Eles me obedeciam em tudo! Eu ia ao baile com eles no Primeiro de Maio, e não me deixavam em casa. Casar, falaram para eu me casar. Casa quem está falando, quem tem necessidade, eu não tenho não. Cuidei dos meus filhos, todos eles estudaram direitinho, se não estudaram mais foi porque não quiseram, e assim fui levando a vida.
Pergunta:
A Heleni chegou a comentar que a avó dela tinha uma salinha em que ela lavava os mortos, ela era a pessoa que lavava as pessoas que morriam lá em Santa Terezinha.
Resposta:
Eu e meu irmão, ele fala até hoje sobre isso.
Pergunta:
Como era esse trabalho, dona Emília?
Resposta:
Ah... Eu não sei, porque eu tinha medo de defunto.
Pergunta:
Então a senhora não ajudava?
Resposta:
Eu não! Ajudo até hoje, faço tudo, vivo. Morreu, falo: Quem quiser, que cuide! Mas o meu irmão, eu tenho um irmão que tem um salão lá, um salão antigo, e ele ficava, com aqueles coitadinhos daqueles velhinhos, que estavam doentes e não podiam ir ao salão. O meu pai e dizer assim: Vai você lá, corta. Ele fala. Outro dia, na última vez que nós estivemos lá, conversando com eles, ele falou assim: Emília, ainda bem que já morreu tudo quanto é velhinho. Eu falei: Morreram aqueles, mas estão vindo outros! Ele que ia cortar cabelo, barba, mas também ele só cortava, o defunto estava morto, e ele dizia: Vai comigo, hein?! E eu fui acompanhar meu irmão tantas vezes porque ele tinha medo e eu também.
Pergunta:
E aí?
Resposta:
Vou falar para as donas do defunto: Fica aqui, porque se o defunto roncar, eu saio correndo! Era divertido. Eu me divirto até hoje.
Pergunta:
E quem lavava os defuntos, era sua mãe ou sua sogra?
Resposta:
Era a minha mãe e a velharada lá. Eu dizia: Mãe, a senhora parece que não vê a hora de alguém morrer para a senhora ir dar banho? E ela dizia: Cala a boca. E eu calava, porque a italiana já vinha com uma cara assim dizendo: Até parece que você nunca vai morrer.
Pergunta:
E era um trabalho que ela fazia em solidariedade às famílias ou ela ganhava para fazer isso?
Resposta:
Ela não ganhava nada, menina! E ainda tinha que pôr até roupa, tinha gente que não tinha roupa e eu ia até a casa buscar roupas dos meus irmãos e a roupa dela para pôr nos defuntos, nas mulheres. Punha todas bonitinhas. Não era só a minha mãe, era a velharada toda lá de Santa Terezinha, eram todas.
Pergunta:
Aonde vocês velavam os defuntos, naquela época?
Resposta:
Dentro de casa.
Pergunta:
Na casa da própria pessoa?
Resposta:
Sim, na casa da própria pessoa. E tinha apenas o Cemitério na Vila Assunção, não tinha o Cemitério de Camilópolis. Então ao Cemitério da Vila Assunção ia a pé. Quem trabalhava nas firmas, era mandado embora para o enterro porque tinha que levar o defunto na mão.
Pergunta:
Subir tudo?
Resposta:
Até isso. Eu nunca carreguei defunto. Agora minha mãe que dizia: Se você não fizer, quando você morrer ninguém vai te carregar. Eu falei: Eu não vou morrer nunca mãe. Ela dizia assim: Nunca é? Agora é que eu estou vendo, eu peço perdão a Deus, menina. Não brinca, não; não brinca com essas coisas. Mas é divertido.
Pergunta:
Quando a senhora já morava no Centro de Santo André, na Cesário Motta, conta como era ir ao cinema, ao Carlos Gomes?
Resposta:
Carlos Gomes. A gente atravessava a rua, e tinha o porteiro que tomava conta, ele já deixava a gente entrar. Porque eu adorava o cinema, eu e os meus filhos, e a ópera. Depois eu vou te contar da ópera. Hércules era pequeno e ele dizia: Mãe, eu quero ir ao cinema. E eu dizia: Vai. Eu dava o dinheiro, chegava na Jones e dizia assim: Não quero esse dinheiro, compra bolacha. Mas eu ficava na rua olhando ele atravessar, ele ia sozinho ao cinema. E no tempo da ópera, isso a gente morava em Santa Terezinha, meu pai adorava ópera e eu também, veio o Caruzo, um cantor de ópera que era amigo do dono do cinema.
Pergunta:
Foi lá no Carlos Gomes?
Resposta:
No Carlos Gomes. A Heleni não pegou isso, a Havani ainda sabe. Que pena!
Pergunta:
Então conte dessa época?
Resposta:
No tempo da ópera, eu era menina ainda.
Pergunta:
Vinha sempre ópera no Carlos Gomes?
Resposta:
Vinha. O Caruzo é o único. Eu tentei me lembrar dos outros artistas também, mas não consegui. Tanto tempo. Meu pai dizia: Quem quer assistir à ópera? Mamãe aqui dizia: Eu vou, pai. E ele ficava todo feliz da vida.
Pergunta:
E vocês iam a pé de Santa Terezinha?
Resposta:
Não. Tinha a Jardineira, o ônibus do senhor João era a jardineira.
Pergunta:
E para voltar era muito tarde?
Resposta:
Não, quando tinha ópera, não era como agora, tinha tudo horário certo. O senhor João esperava e a jardineira vinha até a estação, não subia, não passava das porteiras.
Pergunta:
Dona Emília, nessa época já tinha a estação que atualmente é a Prefeito Saladino? Tinha a parada do trem ali?
Resposta:
Não tinha, ali não. Tinha apenas em Santo André, São Caetano, Mauá, Ribeirão Pires.
Pergunta:
Não tinha Utinga, então?
Resposta:
Utinga, tinha. Tinha e ainda tem a mesma estação. Eu adoro passear na estação para ver o que era a estação. Agora está tudo bonito, e agora também está uma pouca vergonha que não dá nem coragem de sair.
Pergunta:
Quais filmes a senhora gostava de assistir no cinema?
Resposta:
Tudo. Tinha o pai de Giba que tocava piano, era mudo. Você só tinha que saber ler, porque se não soubesse ler, não entendia nada.
Pergunta:
A senhora também ia ao Tangará?
Resposta:
Tangará. Ao Tangará, fui desde o dia da inauguração, fui convidada. O dono do Tangará morava em frente da minha, onde eu morava aqui em Santo André e entrei de graça na inauguração. Agora está tudo uma porcaria.
Pergunta:
E aqueles cinemas que tinha? Tinha cinema na Vila Guiomar. Vocês iam mais longe?
Resposta:
Fechou tudo. Não, era o Carlos Gomes e o Tangará. Aos outros eu ia, mas não muito. Quando passava um filme para criança, que a criança queria assistir, então eu levava, eu e minhas irmãs levávamos, senão, não. Também fechou tudo isso. Tinha um cinema bom. Um dia a Derci Gonçalves ia fazer uma peça lá, ela estava assim na bilheteria e eu passei, eu, o marido daquela que está calma lá, a Derci assim, quando a Derci me viu, eu corri, porque se eu olhasse e ficasse conversando com a mulher, eu também era puta, vagabunda e sem-vergonha como ela. Veja que situação! Veja como a gente era! E tinha o outro lá no Ipiranginha, que também acabou. Esse na Vila Guiomar você chegou a ver?
Pergunta:
Eu não, mas meu pai chegou.
Resposta:
Diz para o seu pai que dá dó de ver aquilo lá agora. Fala para ele que dá dó. Virou SESI, depois virou sacolão, agora nem sei o que é.
Pergunta:
Dona Emília, o que a senhora se lembra dos políticos aqui da cidade? Dos prefeitos?
Resposta:
Olha, antigamente era gente boa, direita e honesta, Santo André era só aquilo porque não tinha dinheiro. O dinheirinho que tinha era muito pouco. Depois que começou a entrar dinheiro, menina! Depois do Zampol, conhecido, agora até esqueço o nome dele, vou te contar! Já até deixei de votar, porque não valem nada. Tinha um político lá, o Lincoln Grilo, conheceu, ouviu falar, sabe como ele comprava a fazenda? Com o dinheiro, tudo em moeda, levou tudo dentro, foram duas peruas de moeda para ele pagar lá. Você acredita em um troço desse? Ele era meu vizinho, a mulher dele era a minha amiga, agora ela faleceu, coitada, mais umas dessas mulheres que são vítimas do marido. Teve prefeitos bons, mas ultimamente não tem mais um. O único que era tão bom mataram agora e o próprio ladrão estão lá dentro.
Pergunta:
E a senhora era amiga da família do Celso Daniel também?
Resposta:
Nossa! Celso. Eu era amiga da mãe dele, o pai dele era muito sem-vergonha. As mulheres falavam que ele era muito sem-vergonha. Aquela também penou. Está gravando isso?
Pergunta:
Pode continuar, depois a gente tira. Pode continuar.
Resposta:
O pai do Celso era um putanheiro e a mulher dele, dessas vítimas. Depois morreu o pai. Não dá risada não, o negócio foi triste. Agora o Celso foi um ótimo prefeito, vamos deixar essas boas besteiras (risos). Isso aí, vai um dia lá na minha casa, vocês vão lá eu vou contar essas histórias para vocês direito e tem uns livros de Santo André, bastante...
Pergunta:
E a senhora se lembra de um caso que a Heleni comentou, ela era menina, de um prefeito que foi impedido no impeachment que teve?
Resposta:
Ah! Como é o nome dele? Sam? Ele não valia nada. Eu tenho até fotos dos carros, daqueles carros, Brucutu, que os soldados ficavam em cima para atirar. Foi em Santo André, foi perto da Cesário Motta. O marido dela vivia lá com toda a meninada, os soldados punham todos eles lá em cima. Mas foi um bafafá, um bafafá depois que eu falei: Meu Deus, onde eu estou metida! Aí passa um coitado de um negrão lá, o negro começou: Vai sair tiroteio. As crianças lá em cima, não só as minhas, todas que moravam na Cesário Motta, e eles estavam dentro da Prefeitura, que era bem no Largo da Estátua, pegado da Igreja do Carmo, e ele diz que não saía, mas eu vou me lembrar do nome dele, ele diz que não saía e queriam tirá-lo, depois conseguiram tirar ele, aí entrou um prefeito, eu morava na Cesário Motta, muito bom também, depois disso veio o Grilo, veio outro, aí o Grilo acabou com a vida.
Pergunta:
Na época de 1950, a senhora lembra da chegada da televisão?
Resposta:
Lembro.
Pergunta:
Conta um pouquinho desse tempo.
Resposta:
A televisão chegou quando eu ainda morava em Santa Terezinha. A primeira televisão foi do farmacêutico, e ele coitado colocou a televisão para todo mundo assistir, mas ninguém assistia porcaria nenhuma, porque não tinha condições, depois que a TV começou a aperfeiçoar bem, aí foi uma beleza. Mas era ruim a TV. A minha irmã diz assim que comprou uma e foi ligar, pegou fogo. O primeiro beijo que deu na televisão foi um escândalo. As beatas só faltavam... Foi o Walter Foster e aquela moça, o primeiro beijo, mas foi um beijo assim de nem sei como é quê. Nossa senhora, foi uma revolta tremenda! Onde se viu aquilo, aparecer aquilo, a censura em cima, e aquela coisa toda! Eu agora fico observando a televisão e pergunto: Onde está a censura? Sumiu, ninguém sabe, ninguém viu.
Pergunta:
E quando o homem chegou à lua?
Resposta:
Isso a gente era obrigado a ver tudo, porque o pai da Heleni tinha uma coisa, ele falava: Você vai assistir para aprender. E a gente ia assistir. Ai daquele que não lesse o jornal de manhã, ele levantava e lia o jornal depois ele pegava o jornal punha direitinho, cada um que levantava, se não tinha tempo ia embora, mas eu lia o meu jornal todo dia de manhã e aquilo foi uma coisa.
Pergunta:
Dona Emília, depois que teve a ditadura dos militares, que a época ficou um pouco mais repressiva, mais pesada, a senhora tinha medo assim, pelos seus filhos, que eram estudantes?
Resposta:
Eu tinha medo daquela que veio dar entrevista aqui, ela era metida. Ela não falou? Falou que tinha um padre lá que era meio maluco também? Ela e a corriola dela tudo dentro da igreja, o irmão dela um dia foi lá e queria bater nela dento da igreja, porque o padre estava, não sei o quê. Ela disse que a situação não está para essas coisas. Mãe, eu vou. Porque a Heleni sempre foi uma menina muito estudiosa, e muito boazinha. Agora não, mas ela era uma menina quietinha, boazinha; agora não sei nem mais o que eu posso falar, porque agora ela só cuida das políticas dela, eu não quero nem saber também, mas ela gostava de tudo. A Heleni e o irmão que faleceu gostavam de tudo, tudo o que era novidade eles adoravam. Eu entrava também, mas nessa eu não entrei, porque nessa eu não podia entrar. Se me matam? Sabe o que eles fizeram com uma amiga, filha de uma amiga da Havani? Ela fugiu, pegaram o menino, filho dela, com aquelas baionetas, e diziam assim para a mãe: Se você não falar, nós vamos cortar o menino. Veja só!
Pergunta:
Então a senhora temia pelos seus filhos?
Resposta:
Não só pelos meus, mas por todos. Por todos. E depois que aconteceu isso com aquela menina, eu falei para a Heleni, ela me disse assim: Mãe, quando eles vêm para me pegar, eles não vão me pegar nunca. Mas foi barra pesada, aquela foi barra pesada, foi pior que a guerra, porque a guerra chegava e matava, a revolução também matava, mas aquela foi pior Foi pior de todas. Pegavam uma criança e matavam! E eles matavam mesmo. Se não falasse onde estavam os pais, eles matavam. Não conseguiram matar aquela criança não sei por quê. Porque tinha um delegado de Santo André, o doutor Piu, ele era um negrão alto, um cara bom, bacana mesmo, e ele não deixou, porque a polícia veio, não sei se era do Rio, não sei se era de São Paulo, não sei de onde saíram todos aqueles cavalos para pegar a moça, porque se a pegassem, eles iriam matá-la. A moça tinha fugido. Foi uma coisa muito triste. A única coisa triste que eu tenho na minha vida é essa. Da revolução a gente via os trens quando iam chegando em Socorro, todos aqueles soldados, tudo caindo, tudo cheio de sangue, coisa triste.
Pergunta:
Dona Emília, o tempo da fita já está terminando, então a gente gostaria que a senhora deixasse uma mensagem gravada para a gente terminar o seu depoimento.
Resposta:
Que mensagem?
Pergunta:
O que a senhora quiser dizer, para os jovens, para as futuras gerações.
Resposta:
Agora com os jovens, será que eles vão ouvir? Se essa turminha soubesse como é dura a vida que eles estão levando, matando pai, matando mãe, matando avó. Ontem eu já falei para os meus netos: Vocês não vão me matar? Ontem foram todos na minha casa, me pegaram de supetão, cada cavalo! Os meus são mais altos, têm 1.80m e não sei quanto, quando eu fui abrir, o porteiro falou assim: Seus netos estão subindo. E eu: Como? Meus netos? O porteiro deu uma risada! Quando eu abri a porta, eu quase caí dura. Eles vieram cheios de pacotes, cheios de pizzas, cheios de tanta coisa.
Pergunta:
Mataram a senhora de susto?
Resposta:
Me deu uma puta de uma dor de cabeça! Até o pequenininho, o sarnentinho, o pequenininho, foi, porque o filho da Havani tem um filho, não é casado, mas a criança é fora de série, é a coisinha mais linda do mundo! É um bisneto. Os grandes chegaram tudo com as caras de pau: Vó, tudo bem? Beijavam, e eu fiquei assim. Ele também chegou e me deu um beijo aqui. Você acredita num troço desse? Mas é isso que eu estou falando para eles: Vocês não vão vir me matar. Não é? Porque eu não tenho herança para deixar. Posso deixar dívida, mas herança, não vou deixar; dívida eu não deixo de jeito nenhum. Isso que eu tenho que falar, essa turma precisa ter mais fé em Deus, e respeitar pai e mãe porque eu era triste também, mas sempre eu respeitei meu pai e minha mãe. Porque também se eu não respeitasse, eu levava cada surra, menina! É isso só o que eu tenho para falar.