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Eneyda Milon Calsone foi tecelã e contra-mestre nas indústrisa de tecelagem. Migrou para a região do ABc quando moça em busca do trabalho operário. Na sua atividade industrial, deveria usar protetores de ouvido e, mesmo assim, tem a audição comprometida por causa desse trabalho. Conta histórias sobre namoro e casamento e trasbalho.
Projeto Memórias do ABC
Depoimento de ENEYDA NILVAN CALSONE, 67 anos.
IMES - Centro Universitário de São Caetano do Sul, 7 de julho de 2003.
Entrevistadores: Priscila F. Perazzo e Eleonora Chagas Mendes.
Pergunta:
Dona Eneyda, a senhora pode começar contando onde a senhora nasceu?
Resposta:
Ah! Se você não falar alto, eu não vou escutar.
Pergunta:
A senhora pode começar contando onde a senhora nasceu, data de nascimento, como era o lugar que a senhora nasceu, da sua infância?
Resposta:
Eu nasci no dia 13 de junho de 1927.
Pergunta:
Onde?
Resposta:
Caconde.
Pergunta:
Onde fica?
Resposta:
No estado de São Paulo.
Pergunta:
Como era Caconde?
Resposta:
Fica perto de Mococa, divisa com Poços de Calda.
Pergunta:
A senhora pode contar um pouquinho da sua família e da sua infância lá em Caconde?
Resposta:
Todos da minha família são de Caconde, inclusive meu marido também era de lá.
Pergunta:
A senhora pode descrever um pouco a cidade? Como era? A senhora tinha irmãos? Como eram as brincadeiras de criança?
Resposta:
Você está tão longe, eu sou ruim de ouvir. Vou falar a verdade: a fábrica acabou com a minha audição.
Pergunta:
A senhora pode contar como era a região, as brincadeiras de infância?
Resposta:
A nossa região era de lavouras, era só plantação de milho, café, arroz, feijão, algodão.
Pergunta:
Quantos irmãos a senhora tinha?
Resposta:
Nós éramos onze irmãos: oito mulheres e três homens. Faleceram três, então nós estamos em oito.
Pergunta:
E a senhora era qual filha? Qual número?
Resposta:
Eu era a terceira, o décimo primeiro era um homem que morreu com 1 ano e 9 meses de pneumonia; depois tem a outra minha irmã, a mais velha , considera mais velha; depois sou eu, eu sou a terceira.
Pergunta:
E como era lá? Como era a vida na tua família? Vocês, quando crianças, trabalhavam na lavoura?
Resposta:
A vida nossa... Meu pai toda a vida trabalhou com gados, ele era retireiro, ele tirava leite, ele desnatava o leite, fazia creme para manteiga e cuidava das vacas. Esse era o serviço dele e eu ajudava meu pai, eu que ia desnatar o leite para ele, eu era menina naquele tempo. E eu que ia para o retiro ajudar meu pai, eu desnatava o leite para ele.
Pergunta:
Vocês moravam em propriedade própria?
Resposta:
Não. Nós morávamos na casa da fazenda, até que nos formamos, ficamos moça, meu pai então veio para a cidade, arrumou uma casa, alugou uma casa, nós morávamos de aluguel, e meu pai começou a trabalhar numa máquina de beneficiar arroz, beneficiar arroz e fubá, beneficiava o milho para fazer fubá. Eram duas coisas beneficiadas, o arroz para limpar e o milho para fazer o fubá, e cada uma de nós trabalhava em outro lugar. Eu como tinha a minha irmã mais velha, ela lecionava para a prefeitura rural, na escola rural. Eu fui trabalhar primeiramente na telefônica, trabalhei como telefonista, desde a idade de 16 anos até os 20 anos, quando eu casei. Quando eu me casei é que saí do serviço para vir embora para São Paulo. Meu pai veio para cá, para São Paulo, a gente começou a batalhar. A essa altura, quando meu pai veio para São Paulo, eu já era casada, eu já morava aqui, eu que trouxe a família para cá. Eu fui trazendo de um em um, devagarzinho veio todo mundo para cá. Eu ajudei meu pai, ajudei minhas irmãs, ajudei a colocar minhas irmãs no emprego, uma das minhas irmãs até já faleceu. Eu coloquei uma irmã na PC de Rugde Ramos, numa indústria lá e as outras irmãs numa tecelagem também em Rugde Ramos, e eu fui trabalhar na firma em São Paulo. A essa altura eu já tinha meus dois filhos, eles eram pequenos, eu trabalhava numa firma ali na Av. dos Estados, não sei se vocês conhecem, onde agora é uma igreja evangélica muito grande, beirando o rio, trabalhei muitos anos dentro da firma, depois, de dentro da firma, me levaram para servir almoço num restaurante; servi almoço no restaurante como garçonete da firma. Depois desse período que eu fui garçonete da firma, me colocaram como cozinheira, trabalhai oito anos como cozinheira da firma.
Pergunta:
Que firma era essa?
Resposta:
A firma abriu falência, eu levava minhas crianças na creche, eu levava meus filhos na creche todo o dia, pegava o ônibus de manhã, de madrugada, eu entrava às 5:00 horas no serviço, levava minhas crianças comigo, todos os dois, tenho um casal, levava comigo na firma, depois a firma abriu falência porque o patrão morreu, o grandão morreu, o manda-chuva e ficou para os filhos, os filhos não souberam tomar conta e abriu falência, mandou todo mundo embora, cada um recebeu o seu direito, eu fiquei em casa um bom tempo sem trabalhar, fiquei mais ou menos um ano sem trabalhar. Depois disso, um encarregado que trabalhava lá nessa firma, e que já me conhecia, foi trabalhar nessa firma, nessa firma onde eu trabalhei, então ele foi até a minha casa com um outro chefão me buscar, e eu fui trabalhar com ele, fui para a Mooca, com eles numa indústria têxtil. Essa indústria ficava na Rua Casandoca.
Pergunta:
Qual o nome d a empresa?
Resposta:
Rua Caçandoca.
Pergunta:
Qual o nome da empresa?
Resposta:
Junta fio. Nessa firma nós ficamos mais ou menos dez anos, mas como era de aluguel, eles foram embora para Cumbica, eu fui para Cumbica também; eu fui a primeira que foi para lá para organizar a firma. Como eu era contramestre encarregada chefe, fui organizar a firma para depois o pessoal ir para lá. Eu fui organizar a firma, a firma começou a trabalhar e começou a pegar um pessoal. Quando era para pegar gente na portaria, eu ia escolher as pessoas para trabalhar, era uma coisa que eu não gostava muito porque todo mundo precisava trabalhar e a gente tinha dó das pessoas porque todo mundo pedia chorando. Você sabe como é. A gente precisava escolher as pessoas mais ou menos, aquelas pessoas mais idosas a gente não podia escolher porque quase que não tinham força para trabalhar, então a gente tinha que escolher aquelas pessoas mais novas que tinham mais força, mais resistência, tanto na parte das mulheres como na parte dos homens.
Pergunta:
Dona Eneyda, a senhora pode explica como era o trabalho das tecelãs? Descrever como era, explicando o que faziam?
Resposta:
As tecelãs tinham... Tinha as tecelagens. Primeiro tinha que começar da preparação da fiação, era minha a seção da fiação, então vinham aqueles fardos grandes de junta, não sei se vocês conhecem, essa junta vem lá do Nordeste, só no nordeste tem, então vinham os fardos lá do Nordeste, e essas juntas..., a gente tinha uma seção separada porque fazia muito pó, então os homens separavam as de más condições e as de melhor condição. Com a de boa condição a gente fazia uns tapetes melhores, com a de má condição, fazíamos aqueles tapetes mais inferiores, que eram vendidos mais barato, então dali, daquela preparação, a gente vinha com uma máquina chamada carga grossa, essa carga grossa fiava aquela junta, ela passava numas máquinas tipo rolo com agulhas e ela ia virando, virando, virando, de onde saía aquele pó, com aquele pó ela formava uns fios, uns tubos que saíam de dentro de uns canudos, com aqueles canudos a gente enchia e separava, daquele canudo da carga grossa a gente passava na carga fina, da carga fina ele saía mais fino ainda, aqueles fios saíam mais finos, enchiam aqueles tambores, aqueles tubos, aqueles canudos, a gente falava canudo; daquele canudo ia para a passadeira grossa, era uma passadeira em que a gente colocava os canudos atrás e jogava por cima o fio, passava por baixo de umas agulhas, entrava por dentro e saía na frente outro canudo, saía mais fino ainda, a gente passava para uma outra passadeira que seria uma passadeira mais fina, dali já saía preparado, já ia para outra máquina fazer os carretéis, colocar os fios, ela enchia as bobinas, e daquelas bobinas, ia para a fiação, para as máquinas fiadeiras, saía o fio já preparado para ir para a tecelagem, aquele fio ia pra tecelagem para fazer tecido, fazer o tapete, dali saía aquele fio da tecelagem; quando saíam aquelas bobinas, a gente ia para o tingimento, tingia de todas as cores aquele fio. Por isso hoje a gente é meio ruim da vista, por causa das cores do fio, tingia aquele fio e aquele fio então ia para a tecelagem e nós tecíamos para saírem os tapetes coloridos, os desenhos, os tapetes, para sair o colorido do tapete, uns saíam azuis, desenhado, todo bordado, bonito. Dali saíam os rolos da tecelagem, aqueles rolos preparados, com metragem certa da tecelagem, etiquetavam-se aqueles rolo e encostava de lado, depois, ia para outra fábrica, fábrica essa que era em americana. Acho que ainda existe essa máquina, essa fábrica americana, só que eu não sei se ainda funciona, porque como essa firma que eu trabalhava também fechou, ela fechou, abriu falência, também fechou. Agora essa de América, não sei se ela trabalha. Faziam a metragem dos tapetes de onde saía para a loja. Lá era o ponto final. Esse era o ponto final.
Pergunta:
Dona Eneyda, a senhora morava em Santo André?
Resposta:
Morava em São Caetano. Eu moro em São Caetano há 56 anos. Trabalhava na Mooca e da Mooca fui para Cumbica, Guarulhos trabalha lá.
Pergunta:
Como a senhora se locomovia, horário de trabalho, com quem a senhora deixava sua família?
Resposta:
Nós tínhamos o ônibus. Esse ônibus pegava a gente, nós entravamos às 5:00 da manhã no serviço, esse ônibus chegava na porta da minha casa, para vocês terem uma idéia de como era longe, às 2h30min. Eu saía de casa às 2h45min, quando era 2h45min o ônibus estava buzinado na minha porta, eu chagava lá por volta de 4h45min e saía de lá por volta 14:00 horas. Depois o patrão achou que eu não devia fazer essa vida, como eu era contramestre, encarregada central, eu comecei a sair com a perua da firma, para o chefão lá do escritório, encarregado, comecei a ir com a perua da firma, entrava às 8:00h e saía às 17:00h, esse era o meu horário, inclusive aos sábados, quando precisava, eu ia trabalhar, porque eu fazia fio para transportar para fora, eu fazia o teste do fio, era eu que fazia o teste do fio, então quando precisava, no sábado eu ia preparar aqueles fios para mandar para fora, ia para os Estados Unidos, Itália, França, para muito lugar esse fio era enviado, então a única pessoa indicada para preparar esse fio lá na firma era eu, era eu que fazia esse tipo de fio, então eu enrolava tudo, amarrava, etiquetava e colocava para o meu chefe, depois ia lá para o escritório, do escritório eles mandavam para lá.
Pergunta:
Como ficava a sua família?
Resposta:
Minha família, eu vou te contar. Meus filhos, não crio marginal porque Deus não quis, porque criei na rua. Minha filha ia para a escola, meu filho não quis saber de estudar, então foi trabalhar. Menos mal. Eles ficavam em casa, a minha filha cuidava da casa, porque ela ficou mocinha, quando ela completou 17 anos, eu a levei para trabalhar comigo, ela saiu de lá quando tinha 20 anos, então foi para lá quando tinha 13 anos, ela foi trabalhar comigo; meu filho também tinha 13 anos quando foi trabalhar comigo, levei os dois para trabalhar comigo, para não ficar na rua, foram trabalhar comigo, e minha filha saiu dessa firma para casa, porque ela começou a namorar. Ela já estava com 20 anos, saiu para casa; meu filho saiu de lá, arrumou um serviço melhor, foi trabalhar na General Motors. Da General ele foi para a Volks, da Volks ele foi para a Ford, onde se aposentou. Ele se aposentou na Ford. Meu filho vai fazer agora, no dia 3 de agosto, 55 anos. Essa foi a vida. Meu filho foi criado, tinha uma vizinha muito boa, uma senhora muito boa que eu falo que ela foi a segundo mãe deles, ela os olhava para mim na rua, quando chegava de tarde era só reclamação, porque apanhava, chorava, no outro dia fazia a mesma coisa. (Risos) Essa foi a minha vida.
Pergunta:
E Dona Eneyda, o seu marido foi para a guerra ou para o exército?
Resposta:
Foi.
Pergunta:
A senhora ficou sozinha com os filhos?
Resposta:
Não, eu era solteira na época. Quando eu conheci o meu marido, eu tinha 16 anos, nós morávamos na mesma fazenda. De noite, nós brincávamos de pique no terreno, de esconde-esconde, eu, ele, as minhas irmãs e as irmãs dele, brincavam todos juntos.
Pergunta:
De quem era a fazenda?
Resposta:
A fazenda era de um senhor chamado Pachoalino Mazile, tinha um terreno muito grande de café e tinha uma tulia, e o pai dele, eles eram cortadores de café, podava café, e eles ficavam lá naquela duna, ele e as irmãs, então a gente brincava de noite, não tinha para onde ir, a gente ia até a duna conversar com o pai dele, ia brincar com as irmãs dele. Essa era a nossa vida. Depois meu marido ficou moço, vieram embora para a cidade, as irmãs também ficaram moças, casaram. Ele foi convocado para o exército, serviu em Lorena, chegou a ficar um ano, ficou poucos meses em Lorena, e quando estourou a guerra em 1940, ele foi convocado para a guerra. Ele foi para a guerra, nesse meio de tempo foi um transtorno na família, porque sabendo que um filho vai para a guerra, não sabe se volta, é uma coisa. Vai e fica ou volta, está nas mãos de Deus, tanto que a mãe dele sofreu muito com a ida dele, sofreu de mais com a ida dele para lá, quando ele escrevia, era muito difícil ele escrever porque eles não tinham tempo para escrever, não tinham tempo, e quando ele escrevia, primeiro o Comandante lia a carta, e depois é que mandava, porque não podia mandar nada sobre a guerra, não podia contar nada sobre lá. Só sei que estava bem, que estava tudo bem, só isso mais nada, só sabia que ele estava vivo e a mãe dele foi se entristecendo nessa época, a única lembrança que ela tinha dele era o chapéu com que ele trabalhava na roça, ela pôs na cabeceira da cama dela do lado do travesseiro, e ela dormia olhando para o travesseiro com o chapéu, ela foi se entristecendo, se entristecendo, até que ela faleceu, faleceu de tristeza, pelo fato de o filho ter ido para a guerra. Quando ele chegou, ele não sabia que a mãe tinha morrido porque não o avisaram na guerra. Mesmo que avisasse, o comandante não avisava, porque se avisasse, ele entraria em pânico, desespero, então não foi avisado. Quando ele chegou que ele veio saber, quando ele entrou dentro de casa que ele perguntou da mãe e ficou sabendo que a mãe tinha falecido, foi uma tristeza. Não foi nada bom.
Pergunta:
Nessa Região que vocês moravam, tinha descendentes de italiano, alemães, japoneses? E sofriam alguma coisa por eles serem considerados inimigos?
Resposta:
Lá na minha região, alemão, essas coisas, não tinha muito, só tinha turco, muito turco, realmente até aquelas lojas, tudo que tinha ali, era tudo de turco e italiano, tinha muito, bastantes lojas, tudo que tinha ali era de turco e italiano, tanto que lá na cidade tem até hoje uma fábrica de laticínio.
Pergunta:
Como chama?
Resposta:
Esse leite vem da fazenda onde a gente morou, vem para beneficiar a manteiga e o queijo, é feito lá, lá em Caconde, mas não tinha outras raças, era só italiano, turco e brasileiro.
Pergunta:
A Senhora é de família descendente de quê?
Resposta:
Eu sou de família brasileira descendente de italiano, meus bisavós eram italianos, todos eles eram italianos, tanto da parte do meu pai, como da parte da minha mãe eram italianos, mas só que meus pais eram brasileiros, filhos de italianos.
Pergunta:
Dona Eneyda, quando vocês chegaram em São Caetano, como era a cidade naquela época? Em que ano foi?
Resposta:
São Caetano era pequenininho, não tinha nada, nada, nada, quando eu fui morar lá, em 1947, fez 56 anos agora no dia 2 de julho, 56 anos que eu estou lá, porque eu me casei dia 30 de junho e dia 1 de julho eu vim embora, dia 2 eu fui morar na minha casa .
Pergunta:
Em que bairro?
Resposta:
Bairro de São Caetano, Nova Gerty, já vim para Nova Gerty, só que ali não tinha nada, nada, loja, mercado não existia. Próximo daquele supermercado Joanim que tem ali perto do posto de gasolina tinha uma venda, não falava mercado nem loja, falava venda, era uma vendinha pequena, e era do Joanim mesmo, era dele mesmo, ele e a esposa é que tocavam aquilo ali, não tinha condução, só tinha um ônibus que corria, ele ia e voltava até ali nas belas artes, na escola de belas artes ali em frente a Ben-Hur, vinha até ali, dali voltava, depois ele ia de novo e voltava, o dia que chovia não tinha condução porque era barro, só barro. E ali onde era a escola Belas Artes, era uma vacaria, tinha vaca, tirava o leite e vendia o leite para o pessoal, tanto que a minha filha foi criada com leite de vaca, eu ia buscar lá todos os dias o leite para minha filha, porque a minha filha, quando nasceu, não se deu com leite nenhum, o único leite com que ela se deu foi leite de vaca, então a gente vivia ali. Na frente da minha casa era uma valeta só, não tinha calçada, não tinha nada, era aquela rua estreitinha, passava um carro apenas, quando subia um, descia outro, porque nem carro tinha naquela época, não tinha carro, naquela época era muito pouco carro. A Prefeitura naquela época era muito pobre, não se importava de arrumar aquilo ali. Tanto que uma vez um senhor amigo da gente tinha uma perua e ele trabalhava com aquela perua, ele e o filho dele, a perua dele perdeu o breque, caiu dentro da valeta, o filho caiu na valeta, ele pulou, mas o pai não teve tempo, o pai morreu no local, na valeta, para você ter uma idéia do tamanho que era a valeta. Naquele tempo que a Prefeitura tomou consciência da coisa é que começou a tampar os buracos, ajeitar as ruas, fazer a rua, mas ali ficou por muito tempo para fazer a calçada, não tinha luz, era lampião, ou senão lamparina de querosene, não tinha luz, a luz demorou muito para vir, não tinha televisão, não tinha nada. A gente vivia isolada do mundo, era muito ruim. Antes de os meus filhos nascerem, em 1948, de 1946 para 1947, é que chegou a luz. Quando meu filho nasceu, já tinha luz. Nós éramos muito pobres, não tínhamos recursos, ninguém tinha televisão, ninguém tinha nada. Ali na vila só uma senhora vizinha minha é que tinha televisão, porque ela tinha melhores posses. Ela tinha televisão e as crianças que moravam ali ao redor, que era bem pouco, umas quatro ou cinco casas, iam assistir televisão na casa dela, mas ela não gostava. O dia que chovia , ela não deixava as crianças entrarem e as crianças ficavam tristes porque queriam assistir ao desenho. Criança gosta de desenho. Ela não deixava. Eu falei: Sabe de uma coisa, eu vou comprar uma televisão para o meu filho, e vai entrar quem quiser na minha casa. Eu fui em São Caetano e comprei uma televisão, comecei a pagar a prestação, eu já trabalhava, já ganhava o meu dinheiro, comprei uma televisão, a molecada todinha ali do redor ia assistir televisão na minha casa. Chovia, estava ali.
Pergunta:
Quantos anos seu filho tinha quando chegou a televisão?
Resposta:
Quando chegou a televisão, ele tinha 6 anos, quando eu comprei a televisão para ele, porque a televisão parece que surgiu em 1950. Se não me engano, a televisão surgiu em 1950.
Pergunta:
Dona Eneyda, como eram os fins de semana na cidade de São Caetano, tinha baile, tinha festa?
Resposta:
Não, São Caetano não tinha nada. Não tinha diversão nenhuma, não tinha cinema, não tinha nada. Depois, quando se passaram os anos, que a cidade foi evoluindo, começou a abrir cinema. Se não me engano o cinema foi ali na Rua Manoel Coelho onde é um bingo, ali na esquina da Rua Baraldi, foi o primeiro cinema, depois veio o Cine Vitória, depois abriu um lá na Vila Gerty, porque a Vila Gerty já estava povoada naquela época, mais adiante, uns dez anos para frente, já estava bem mais povoada, abriu um outro cinema, ali na Neli Pelegrini, onde tem uma igreja de crente, ali era um cinema, Cine Real, que hoje já fechou e também é uma igreja de crente; aquele da Rua Manoel Coelho fechou também, onde hoje é um bingo, aqui em São Caetano acabou o cinema, não tem mais cinema em São Caetano. O único lugar que tem cinema agora é lá no shopping. Se a meninada hoje quer ir ao cinema, se você quiser assistir a um filme, você tem que ir ao shopping em são Caetano ou tem que ir a um shopping em Santo André.
Pergunta:
Você chegou a assistir no cinema algum filme do Mazzaropi?
Resposta:
Sim. Assisti a muitos filmes do Mazzaropi, muitos, eu adorava os filmes do Mazzaropi e adoro até hoje, quando passa na Cultura, eu assisto.
Pergunta:
Como era para ir ao cinema assistir a esses filmes? Vocês iam de fim de semana?
Resposta:
Como que a gente se preparava para ir ao cinema? A gente ia aos sábados e domingos. Domingo era o dia que a gente ia, a gente tinha folga, como eu trabalhava, eu ia muito pouco ao cinema, porque no domingo eu tinha muito que fazer, porque meus filhos eram pequenos, tinha roupa para lavar, casa para arrumar, tinha que deixar tudo arrumado para segunda-feira, dona de casa tem muito serviço para fazer. E às vezes, quando sobrava um tempinho, a gente ia ao cinema sim, eu fui muitas vezes no cinema assistir ao Mazzaropi. Assisti a filmes que nem me lembro, mas muitos filmes bom, como Nadando em Dinheiro Nossa! Muitos filmes.
Pergunta:
Era comum as mulheres trabalharem como a senhora?
Resposta:
Sim, era comum, porque naquela época o dinheiro era muito pouco, não havia dinheiro, então as mulheres também precisavam trabalhar para ajudar os maridos, porque se não ajudassem, não teriam como manter a casa, então a gente trabalhava para ajudar a manter a casa e ter algo mais, como hoje agradeço muito a Deus por eu ter trabalhado e ter a minha casa, eu não sou rica, sou pobre, estou na classe média mas em ponto de pobre. Graças a Deus eu tenho uma casa boa para morar, aonde meus netos também moram, tem uma casa nos fundo e eles moram comigo, por que os pais deles são separados, a mãe teve que ir embora, ela teve que desocupar o lugar, tanto ela como ele, meu filho, quando se separou dela, da mãe dele, com três dias ele deixou a casa, é a lei, em três dias deixou a casa e ela também tinha que deixar a casa, ela tinha que ir embora de lá, ela não podia ficar lá, porque ela não era nada mais minha, ela não pertencia mais à minha família. Pertencia um ponto sim, ela é mãe dos meus netos, eu adoro de paixão meus netos, são a minha vida meus netos, se eu vivo hoje é por eles. Então quando foi pra fazer o desquite, ela foi ao Fórum, começou a chorar muito e pediu para o juiz que ela não tinha para onde ir, o Juiz me chamou na sala e falou comigo. Falou para mim: Se a senhora tem um lugar, um canto para deixar seus netos, a senhora deixa seus netos, porque é seu sonho, deixe os lá até eles crescerem, vão prestar a maior idade, quando eles completarem a maior idade e estiver trabalhando, se eles quiserem sair para arrumar uma casa melhor, eles vão sair e vão deixar a casa da senhora. Foi isso que o juiz falou. Eu falei: Se for por causa disso, pode ficar lá porque os meus netos na rua eu não quero, eu não quero que amanhã um neto meu seja marginal, nem minha neta, uma prostituta, não quero, eles não vão se enfiar numa favela porque é aonde eles iriam, não tinha outros lugares para eles irem, não tinham posse para pagar um aluguel. Então eu peguei e falei: Não, meus netos vão ficar comigo, eles vão completar maior idade, o dia que eles quiserem sair de lá, arrumar uma casa, então eles saem, ou se eles casarem, vão embora, eles fazem o que quiserem da vida deles. E assim foi.
Pergunta:
Quando isso aconteceu?
Resposta:
A separação foi há dez anos, eles se separaram, se divorciaram direitinho, são bons amigos, graças a Deus, meu filho casou novamente, são amigos da esposa dele também tanto que eles vão muito na casa dela, adoram esses meninos, agora vão passar as férias na casa do pai, já vão para Santos. Uma turma vai agora para lá. Para casa do pai deles, porque eles moram lá, um tem uma entrevista não pode ir agora, então ele vai mais tarde.
Pergunta:
Dona Eneyda, como tecelã, como operária de fábrica, vocês eram sindicalizados, tinham sindicato?
Resposta:
Tínhamos sindicato, tudo, a gente tinha todos os direitos legais.
Pergunta:
E quais eram os direitos naquela época?
Resposta:
O direito da gente, nós tínhamos décimo terceiro, se você fosse mandado embora, você tinha todos os seus direitos, você ia fazer a sua monogração, recebia seu fundo de garantia, o tempo que você tivesse de serviço, recebia tudo direitinho, tanto que quando eu saí da firma, eu saí da firma antes de a firma fechar, porque eu fiquei doente, eu já estava com 31 anos e 4 meses de trabalho, meu filho não me deixou ir mais para o trabalhar. Ele falou: Mãe, a senhora não vai mais trabalhar, a senhora já trabalhou demais, a senhora já criou a gente, nós já estamos adulto, nós já somos donos do nosso nariz, eu já sou casado, tenho os meus filhos, a senhora não vai trabalhar mais, a senhora vai ficar em casa. Eu fiquei doente, eu me machuquei na firma, burrice da gente, fui pegar uma caixa pesada eu machuquei o braço, fui para o médico e o médico me passou uma injeção, eu tomei essa injeção, três minutos depois me deu choque anafilático, eu fui sem sentido para o hospital, fiquei cinco dias na UTI, em estado de coma, depois saí da UTI eu fui para o quarto fiquei, treze dias no Hospital São Caetano, depois fui para casa e meu filho não me deixou voltar mais. Eu queria voltar a trabalhar, mas ele não deixou. Ele me mandou no carro lá na fábrica e pediu minhas contas. Falou: A minha mãe não vem mais trabalhar. Pagaram todos os meus direitos, enquanto eu estive doente, eu fui para São Paulo fazer monogração, me pagaram fundo de garantia direitinho, eu me aposentei, fui ao INPS, levei todos os meus documentos na monogração do fundo de garantia, levei tudo direitinho no INPS, me aposentei por tempo de serviço, 31 anos e 4 meses de trabalho.
Pergunta:
Dona Eneyda, a senhora lembra se tinha alguma greve?
Resposta:
Naquela época tinha greve, mas a nossa firma não tinha grave, a gente fazia uma reunião no salão e chamava todo mundo lá, parava a firma, parava as máquinas, todo mundo ia para o salão e a gente falava com eles: Nós estamos falando que vai ter greve e que o piquete vai vir aqui na porta forçar a barra com vocês, para vocês fazerem greve. Mas tem uma coisa: se vocês prometerem que não vão fazer greve, o que for de direito vocês vão receber, se eles não receberem nada porque vão fazer greve, vocês vão receber um pequeno X de aumento. Esse foi o combinado. No entanto as outras firmas, todas ali em volta, tinham firmas que eram ao lado da nossa firma, fizeram greve. Toinha, uma outra firma bem mais para cima, que eu não me recordo o nome, também fez greve, vieram na porta da nossa firma, mas o pessoal não quis sair, ficaram até na hora de eles irem embora, ninguém fez greve na minha firma, mas as firmas faziam greve sim.
Pergunta:
Essa greve que a senhora acabou de falar, a senhora lembra mais ou menos como era?
Resposta:
Isso foi em... Não me recordo. Foi em 1969, se não me engano. Teve muita greve. A nossa firma continuou trabalhando por detrás de um lugar que eles não passavam, tinha uma cerca detrás que o pessoal entrava e ia trabalhar, era um lugar que ninguém conhecia. Quando o ônibus chegava, deixava-os lá, e quando saía, saía pelo mesmo lugar, quer dizer a minha firma não teve greve. Nosso patrão era muito bom, bom demais, ele era muito humano, ele era muito caridoso, muito humano, era muito bom. Se você precisasse dele, ele se dispunha a fazer. Era muito bom mesmo.
Pergunta:
Naquela época que o pessoal fazia greve, o que eles estavam reivindicando?
Resposta:
Melhores salários, melhores condições de vida, melhores condições de saúde, é o que eles reivindicavam, mas o que mais eles pediam era salário, o salário estava baixo e eles queriam um pouco mais, e saúde, porque a nossa firma tinha convênio, todo mundo era conveniado, o hospital tinha enfermaria, tinha enfermeira que cuidava das pessoas, e o hospital em que éramos atendidos era lá em São Paulo, lá no hospital Nossa Senhora do Carmo, ali perto da Beneficência Portuguesa. Quando acontecia alguma coisa, tipo um acidente, éramos atendidos lá.
Pergunta:
Dona Eneyda quando teve a revolução dos militares de 64, no Brasil, a senhora lembra como foi aqui em São Caetano, se teve alguma repercussão no trabalho de vocês?
Resposta:
Não, não afetou nada, todo mundo trabalhou normalmente. Para vocês terem uma idéia, essa revolução durou pouco. Em São Caetano não afetou nada, o pessoal trabalhou do mesmo jeito, normal, não fez nada. Acho que foi mais no exército. E para vocês terem uma idéia, eu me lembro da Revolução de 32, eu tinha 5 anos, a gente ficava com as trincheiras, ficava bem no alto, bem no alto, bem longe, num campo ficavam as trincheiras, lá de onde eles atiravam na cidade contra os partidos e ficávamos escondidos debaixo do porão da casa do meu tio, tanto que a gente não saía dali; se a gente saísse dali, a gente poderia receber uma bala, tanto que uma bala pegou a cama da minha tia, no quarto dela, que vazou a cama e a parede; fuzil, eles atiravam de lá, canhão, essas coisas. Nessa época da revolução meu avô era bem velhinho e ele estava muito mal com problema de coração, muita falta de ar, a gente não tinha como tirar ele dali, para levar para fora, ao médico ou levar em lugar nenhum, a gente só esperava uma hora que o coitadinho morreria ali dentro, não tinha jeito, sorte que graças a Deus só durou uma semana a Revolução, depois acabou. O pessoal rendeu o partido contrário e a revolução acabou, foi onde nós pudemos tirar meu avô de lá, levar ao médico e cuidar dele. Nessa época da Revolução a coisa ficou muito ruim. Não tinha açúcar, não tinha feijão, não tinha farinha, não tinha querosene, não tinha nada. Para a gente pegar um quilo de açúcar, um quilo de farinha de trigo, a minha mãe, coitada, punha todos os filhos na fila para pegar um quilo de cada coisa; uma vez por semana a gente pegava um quilo de cada coisa, eu pegava um quilo de açúcar, um quilo de arroz e um quilo farinha e pegava um litro de querosene. Quer dizer, a gente às vezes usava lamparina, quando não tinha arroz e a força faltava muito, quando a água baixava da represa, não tinha força, então a gente pegava os meus irmãos para pegar um quilo de cada coisa também, era onde a gente passava a semana, e na outra semana, quando anunciava que era para fazer a fila, eu na fila de novo, até terminar o racionamento.
Pergunta:
Dona Eneyda, Getúlio Vargas morreu nos anos 54. A senhora lembra alguma coisa?
Resposta:
Quando Getúio morreu... Eu vou te falar uma coisa: Que Deus tenha aquele homem num bom lugar, porque se hoje nós temos alguma coisa agradecemos a ele, se nós temos a nossa aposentadoria, agradecemos a ele, porque foi ele que fez a aposentadoria para nós, ninguém pode tirar, o Getúlio foi muito bom, o Getúlio foi o pai dos pobres, ele ajudou muito a pobreza, muito, ele era o pai dos pobres, ele ajudava muito o povo, tanto que os grandões, os maiorais, não gostavam dele, tanto que até hoje eu não acredito que Getúlio morreu porque ele quis morrer, não acredito. Eu acho que por detrás disso tem alguma coisa, eu acho, na minha opinião, eu acho que tem alguma coisa por detrás disso, mas ele era muito bom, ele deixou muita coisa boa pra nós.
Pergunta:
Dona Eneyda, para terminar, a senhora gostaria de deixar registrado, no seu depoimento, alguma coisa que a senhora queira falar para a história, para seus netos, para os filhos dos seus netos?
Resposta:
Eu gostaria sim. Eu gostaria muito de deixar essa entrevista que nós acabamos de fazer agora, deixar para os meus netos, porque eu acho que vai ser muito importante para eles, principalmente esse que está ouvindo, porque até hoje não sabia um pedacinho da minha vida, ele está sabendo hoje um pedaço da minha vida, eu sofri muito na minha vida, sofri demais. Quando eu era pequena sofri muito, eu praticamente fui criada na casa dos outros porque meu pai era muito pobre, então eu queria deixar registrado isso para eles, que esta entrevista sirva para eles guardarem como uma lembrança e servir também futuramente para os filhos deles, os meus bisnetos e talvez quem sabe para os meus tataranetos. Eu não sei se eu vou chegar a conhecer os meus bisnetos, porque os meus netos não tão querendo casar logo. (Risos) Acho que não vou ter bisnetos tão cedo, então eu gostaria de deixar registrado isso, porque a minha perspectiva de vida é muito dura, minha vida foi muito sofrida, sofrida mesmo, é isso que eu gostaria de deixar registrado para eles.