X

Digite o termo que deseja pesquisar e selecione a categoria

  • TEMAS
  • PROJETOS
  • DEPOENTES

HiperMemo - Acervo Multimídia de Memórias do ABC da Universidade IMES

DEPOENTE

Isabel dos Santos

  • Nome: Isabel dos Santos
  • Gênero: Feminino
  • Data de Nascimento: 01/06/1943
  • Nacionalidade: 23
  • Naturalidade: Santo André (SP)
  • Profissão: Não informada

Biografia





Transcrição do Depoimento de Isabel dos Santos em 04/07/2005

Depoimento de ISABEL DOS SANTOS, 63 anos.

Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 04 de julho de 2005.

Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC 

Entrevistadores: Priscila F. Perazzo e Robson Conceição.

Transcritores: Meyri Pincerato, Marisa Pincerato e Márcio Pincerato.

 

Pergunta: Comece falando a data e o local de seu nascimento e conte um pouco sobre a sua família.

 

Resposta:

Nasci no dia 1º de junho de 1943.

 

Pergunta: Aqui diz que a senhora nasceu por parteira. Como era nessa época?

 

Resposta:

Nessa época tinha hospital, mas era muito difícil achar um hospital e geralmente eram as parteiras mesmo, umas diplomadas, outras curiosas. Eu morava na Rua Espanha, minha mãe, e minha avó me pegou.

 

Pergunta: Ela era parteira?

 

Resposta:

Não era, mas me pegou assim mesmo. Ela era bem entendida, porque as mulheres antigas eram mais cuidadosas, mais atenciosas. Foi minha avó que me pegou. Depois de lá nós mudamos para a Rua Hungria, porque ali não tinha nada, era um verdadeiro matagal e aquela trilha, não tinha nem rua. Tinha um bosque ali e logo que nós mudamos para lá que começaram a fazer a Igreja Senhor do Bonfim.

 

Pergunta: A senhora viu construir?

 

Resposta:

Vi. Aquela igreja tem a minha idade, ela é um ano mais nova que eu. Eles começaram a fazer aquela igreja, um quartinho com uma capelinha, depois vai indo, vai indo e até ficar essa igreja grande de agora. Mas não tinha nada ali. Meu pai comprou a nossa casa ali e só tinha terra e mato. Não tinha vizinho. Era um vizinho aqui e outro 1 km longe um do outro. Nós que começamos ali.

 

Pergunta: A sua família plantava as coisas?

 

Resposta:

Nós só tínhamos um terreno pequeno que meu pai comprou, porque as posses não davam para comprar um terreno grande. A gente plantava lá em Camilópolis, na casa do meu avô, que era um terrenão enorme.

 

Pergunta: O que plantavam?

 

Resposta:

Cana, couve, almeirão, mexerica, limão, esse negócio que põe de tempero, colorau, pé de banana.

 

Pergunta: E esses alimentos que vocês usavam?

 

Resposta:

A gente comia, porque meu pai naquele tempo estava desempregado. Era difícil arrumar serviço naquele tempo. Depois que meu pai arrumou serviço na Rhodia foi melhorando.

 

Pergunta: Sua mãe trabalhava?

 

Resposta:

Minha mãe lavava roupa para fora e num pedacinho de quintal que nós tínhamos e que temos até hoje, minha mãe plantava alguma coisa. Plantava verduras e vendia alguma coisa.

 

Pergunta: E as brincadeiras de criança?

 

Resposta:

Eram muito boas. Eram brincadeiras sadias naquele tempo, porque as brincadeiras de hoje são ruins. A gente brincava de passa-anel, fita, de se esconder, de amarelinha, de fazer comidinha. A minha mãe dava as coisas para nós fazermos e ensinava. As mulheres de antigamente, mais do meu tempo, todas sabem cozinhar, lavar e passar, porque as mães ensinavam. Hoje em dia, com a correria do trabalho, não dá tempo de ensinar as crianças. A gente fazia casinhas de barro para brincar. Fazia aquela roda de meninos e meninas e nós fazíamos mesinha, cadeirinha, radinho. Naquele tempo não tinha televisão, então nós só conhecíamos o rádio. Tudo era nossa brincadeira.

 

Pergunta: Quantos irmãos a senhora teve?

 

Resposta:

Tinha cinco irmãos.

 

Pergunta: Mais velhos?

 

Resposta:

Mais novos que eu.

 

Pergunta: Além da sua família, pai, mãe, irmãos, tinha mais alguém da sua família ali? A sua família era de Santo André?

 

Resposta:

Todos de Santo André. Só meu pai que nasceu no interior, a minha mãe nasceu perto de Registro e ela veio para cá. Meu pai só nasceu no interior, mas foi criado no Parque.

 

Pergunta: A senhora tinha primos?

 

Resposta:

Primas, tios, todos no Parque. Minha família é toda daqui.

 

Pergunta: (Inaudível)

 

Resposta:

Tinha bastante coisa. A gente gostava de fazer arte. Uma vez, não sei se vocês ouviram falar que a Swift era aqui em Utinga e eles traziam aqueles bois para matarem. Um dia a gente estava brincando na rua e apareceu um boi zebu. Virou aquele horror, porque um corre para lá e outro corre para cá. Aí os vizinhos o prenderam num quadradinho até eles vierem buscar. Hoje em dia é mais fácil, qualquer coisa que acontece você chama o bombeiro, o resgate, mas naquele tempo não tinha. Foram os homens, no braço, que arrastaram, amarraram e levaram. Para nós foi bom porque nós ficamos uns dias sem sair na rua, com medo.

 

Pergunta: A Swift tinha um matadouro?

 

Resposta:

Sim, e de vez em quando escapava boi.

 

Pergunta: Eles matavam bois? Como faziam com as casas?

 

Resposta:

Quando você passava ali, você não suportava o cheiro. Ficou por muitos anos aquilo lá. Depois de um tempo ficou só lataria e agora não tem mais nada, porque a Swift virou Perdigão.

 

Pergunta: E como foi a escola?

 

Resposta:

A nossa escola era muito triste, porque nós morávamos no Parque, onde moramos até agora e nós estudávamos no fim de Santa Terezinha, onde passa a Avenida do Estado. Nessa época de frio a gente tinha de ir até lá, porque agora não faz frio, mas naquela época era frio e muito triste. A gente tinha de ir para a escola. Naquele tempo nós éramos muito atenciosos para estudar. Hoje as crianças não querem saber porque está mais fácil. A gente ia chorando para a escola.

 

Pergunta: Era o grupo escolar?

 

Resposta:

Grupo Escola Professora Carlina Caçapava de Melo. Nós estudávamos ali.

 

Pergunta: Era a única escola que tinha naquele lado?

 

Resposta:

Era a única. E depois fizeram uma mais para cá, que era da mesma e a outra ficou lá no fundão. Os alunos que estavam no terceiro ano, porque nós estudávamos até o quarto ano naquele tempo, depois que fazia a admissão para ir para outro lugar, mas lá só tinha aquela. Então, eu até não pude estudar mais porque para quem era mais pobre era difícil. Depois, aqui em Santo André, não sei se vocês já ouviram falar, ou viram as fotografias de como era a antiga Santo André, onde tinha a Mesbla, era uma escola. Não lembro bem o nome da escola. Quando eu saí da escola até queria estudar mais, porque eu sempre fui muito estudiosa. Eu fui do primeiro ao quarto ano sem repetir e minhas notas eram boas e eu tinha aquela vontade de estudar. Mas, para a gente estudar, só tinha aquela escola. Quem tinha um pouco mais arrumava e a gente já não conseguia. E aí eu não consegui estudar mais.

 

Pergunta: Isso aconteceu com seus irmãos, seus primos?

 

Resposta:

Com os mais velhos sim, mas a penúltima e a antepenúltima já estudaram, porque já estava mais evoluído, já tinha mais escolas, porque antes só tinha aquela e quem ia para frente eram pessoas com mais posse.

 

Pergunta: E como vocês iam para a escola?

 

Resposta:

Nós íamos e voltávamos a pé.

 

Pergunta: E como era o prédio da escola?

 

Resposta:

Tinha o térreo, só um andar, aquele monte de classes, como o povo fala, casinha de pombo, tudo igual.

 

Pergunta: E havia séries diferentes na mesma sala?

 

Resposta:

Não. No nosso tempo cada sala tinha sua série.

 

Pergunta: Tinha cartilha?

 

Resposta:

Sim, aquela cartilha Caminho Suave.

 

Pergunta: Tinha todas as matérias naquela cartilha?

 

Resposta:

Tinha todas as matérias do primário.

 

Pergunta: E a religião?

 

Resposta:

Meus pais sempre foram evangélicos. Eu já nasci na religião da minha mãe. Mas quando a gente fica jovem a gente quer dar uma voltinha lá fora, sair um pouco. Quando tinha uns 12 anos eu saí e fiquei até uns 35, 40 anos.

 

Pergunta: Saiu para onde?

 

Resposta:

Saí da religião. Aí eu ia para bailinhos, para festinhas, para todos os lugares. Só que tem uma coisa. A gente ia, dançava até as quatro horas, voltava a pé porque não tinha condução, mas vinha aquela turma toda numa boa.

 

Pergunta: Como eram os bailinhos?

 

Resposta:

Era muito em casa de família, porque no nosso tempo tinha muito bailinho em casa de família. Depois que fiquei mais velha, com uns 35 anos, eu já ia dançar em São Paulo.

 

Pergunta: O que a senhora gostava de dançar?

 

Resposta:

De tudo. Eu já dancei no Som de Cristal, no Lilas, em São Paulo.

 

Pergunta: E como vocês se preparavam para ir ao baile?

 

Resposta:

Era muito chique. A gente colocava aquele monte de saiotes. A gente engomava os saiotes com farinha de trigo, porque goma ninguém tinha. A gente colocava os saiotes no sol e depois passava com ferro a carvão porque não tinha eletricidade naquela época. A gente se arrumava toda. Laquê não tinha. No tempo que era jovem não tinha laquê, então a gente socava breu com álcool, e fazia aquela cola e passava no cabelo. Naquele tempo usava. Você falou das fotografias, mas esqueci de procurar. A gente fazia aqueles coques grandes. Vocês se lembram porque já viram fotografias antigas. A gente fazia aqueles coques enormes, saíamos todas chiques para ir aos bailes.

 

Pergunta: Faziam penteados?

 

Resposta:

Eu usava muito coque. E alisar cabelo naquele tempo, hoje é uma facilidade, mas naquele tempo era com pente quente, colocava no fogão e quando ia passar no cabelo queimava. Era aquela briga.

 

Pergunta: Era moda alisar o cabelo?

 

Resposta:

Era moda, só que naquele tempo era com pente quente. Ainda tenho o pente até hoje, o pente de ferro. Você colocava no fogão, na brasa, porque a gente não tinha fogão a gás, colocava na brasa, passava no pano e penteava o cabelo.

 

Pergunta: As moças que tinham cabelo mais crespo faziam também?

 

Resposta:

Todas faziam.

 

Pergunta: Ficava na maior produção?

 

Resposta:

Era à tarde de sábado inteira.

 

Pergunta: E maquiagem?

 

Resposta:

A gente usava o pó Aladim. Acho que nem existe mais. Era uma latinha de pó azul com uma moça desenhada na latinha. Era chique aquilo.

 

Pergunta: Entre vocês tinham mulheres que já enrolavam os cabelos?

 

Resposta:

Tinha as nossas colegas mais claras que gostavam. O cabelo era liso, mas não tanto, então elas passavam também.

 

Pergunta: Quando a senhora começou a trabalhar?

 

Resposta:

Comecei a trabalhar com 12 anos em casa de família. Trabalhei um bom tempo, depois saí e fui trabalhar na Manuplast, uma firma que era lá perto da Firestone, que fazia aqueles espelhos de carro que você desce quando está sol. Eu tirava a rebarba.

 

Pergunta: A maioria era de mulheres?

 

Resposta:

Sim. Meninos eram bem poucos.

 

Pergunta: A senhora ficou lá por quanto tempo?

 

Resposta:

Acho que um ano. Não me lembro bem.

 

Pergunta: Tinha carteira de trabalho?

 

Resposta:

Tinha.

 

Resposta: E quando a senhora saiu de lá?

 

Resposta:

Fui trabalhar na Lorenzetti, na Mooca. Trabalhei um ano e pouco lá..., porque às vezes dá um branco. Depois saí de lá e entrei numa casa de família.

 

Pergunta: O que a senhora fazia na Lorenzetti?

 

Resposta:

Era para pôr uma peça dentro daquele bocal de luz, que nem usa mais. A gente colocava uma chapinha e os parafusos para colocar ali dentro.

 

Pergunta: Também era registrada?

 

Resposta:

Sim.

 

Resposta: Era fácil arrumar emprego?

 

Resposta:

Era. Até se você não soubesse ler eles te pegavam. A minha mãe trabalhou na Rhodia sem saber ler. Eles pegavam. Depois que foi evoluindo, mas máquinas foram evoluindo e você precisa ler para você mexer com aquilo tudo.

 

Pergunta: Para fazer essas pecinhas na Lorenzetti era manual?

 

Resposta:

Era manual, com chave de fenda. Até tenho cicatriz da chave de fenda que escapou e entrou na mão. Era tudo manual.

 

Pergunta: Na outra empresa era manual?

 

Resposta:

Também manual, com uma faquinha para tirar rebarba.

 

Pergunta: E tinha muitos acidentes?

 

Resposta:

Sim, porque era fácil de você se machucar. Você precisava amolar bem a faca para cortar a rebarba e às vezes a faca escapava e machucava.

 

Pergunta: E aprendia o serviço no trabalho?

 

Resposta:

Lá no trabalho. Você entrava para aprender. Hoje eles querem que você entre já sabendo. Às vezes você nem viu aquilo. Lá você entrava, tinha os dias de você aprender e depois você já ia com as outras.

 

Pergunta: Sua mãe fazia o que na Rhodia?

 

Resposta:

Era na Rhodia Química. Ela trabalhava no tempo que faziam lança-perfume aí. Ela trabalhava naqueles tubos.

 

Pergunta: A senhora tem irmãs?

 

Resposta:

Sim. A minha irmã mais velha trabalhava em casa de família também e depois ela entrou na Continental, fábrica daqueles discos pretos, que vocês nem se lembram. Depois ela saiu de lá e fez um curso de enfermagem e trabalhava em hospital até pouco tempo, quando ela faleceu.

 

Pergunta: E quando você saiu da Lorenzetti foi trabalhar onde?

 

Resposta:

Quando saí de lá, precisava arrumar serviço porque nós éramos pobres e precisávamos trabalhar pelos menores. Eu entrei numa casa e fiquei nessa casa e trabalhei 23 anos nessa casa. Depois que saí dessa casa, com 35 anos, eu fui trabalhar na Fortilit, que é a Brasilit. Lá eu trabalhei 19 anos.

 

Pergunta: Fazendo o quê?

 

Resposta:

Primeiro eu trabalhava nas máquinas. Eu era prensista, trabalhava nas máquinas de prensar as peças. A gente fazia aqueles cotovelos de água, porque era tudo coisa hidráulica, às vezes estava em outra máquina. Depois eles acabaram com a mulherada das máquinas para ficar só com homens, fui ser estoquista e fiquei lá até a firma fechar.

 

Pergunta: O que pagava melhor, ser doméstica ou operária?

 

Resposta:

Eu me levantei mesmo depois que entrei na Brasilit porque lá eles pagavam bem e a gente fazia muita hora extra. Você sabe que eu trabalhava o ano inteiro sem folgar? Eu entrava às seis da manhã e saía às dez da noite, então eu ganhava oito horas extras por dia. E a gente, com aquela fortaleza toda, dava para trabalhar o mês inteiro. Cheguei a trabalhar um ano inteiro sem folgar, direto. Eu trabalhava seis por doze e nos dias de folga eu ia trabalhar porque era 100%.

 

Pergunta: Quando a senhora trabalhava lá, a senhora era casada?

 

Resposta:

Não. Sou solteira. Não achei a tampa do meu caldeirão ainda.

 

Pergunta: A senhora não tem filhos?

 

Resposta:

Tenho uma filha e um neto com 18 anos.

 

Pergunta: A senhora já tinha sua filha nessa época? Como a senhora fazia?

 

Resposta:

Quando entrei nessa firma minha filha já era grande, porque quem a criou foi meu pai e minha mãe. Meu pai até registrou ela no nome dele e a criou.

 

Pergunta: Quando ela nasceu, a senhora trabalhava onde?

 

Resposta:

Não estava trabalhando. Do jeito que eu estava nem como empregada eles pegavam. Eu fiquei em casa e depois que a tive, minha mãe ficou com ela e fui trabalhar.

 

Pergunta: A senhora tinha quantos anos quando ficou grávida?

 

Resposta:

Eu tive minha filha com 17 anos.

 

Pergunta: E você continuou morando com seus pais?

 

Resposta:

Continuei.

 

Pergunta: E quando a senhora trabalhava, a senhora ajudava em casa com o dinheiro?

 

Resposta:

Era tudo em casa. Sempre fui muito caseira, de ajudar em casa. Eu gosto de ver a casa, sempre gostei de comprar as coisas, de ver a casa sempre arrumadinha. Depois minha filha casou, casou nova e ela está aquele toquinho e os filhos grandes. Aí não quis casar mais. Antes eu não quis casar porque ela era pequena e pensei que se eu fosse casar teria de levar junto e às vezes você acha um homem que quer você mas não quer o filho e você tem amor no filho e não quer largar o filho. Então, eu não me casei e fiquei sempre sozinha.

 

Pergunta: A senhora namorou?

 

Resposta:

Bastante, mas não quis casar.

 

Pergunta: O que seus pais achavam de a senhora trabalhar, porque a senhora começou a trabalhar muito nova?

 

Resposta:

A minha irmã mais velha também. Eu comecei com 12 anos e minha irmã mais velha começou com 10 anos, olhando criança. A gente tinha necessidade. Meu pai estava desempregado e a gente precisava. Depois que meu pai arrumou  serviço na Rhodia até estava bem, mas meu pai, aquele paizão que não fazia muita questão da família, ele deixou muito a desejar. Minha mãe que tinha de estar sempre, ela que foi mãe e pai.

 

Pergunta: Ela não se separou dele?

 

Resposta:

Só quando morreu. As mulheres de antigamente eram Amélias, só ficavam ali. Minha mãe era a verdadeira Amélia, sofria com o meu pai, mas estava ali.

 

Pergunta: Foi a senhora a única filha que acabou ficando com eles?

 

Resposta:

Só eu, porque as outras filhas se casaram. Meu irmão casou, o que não casou faleceu e assim foi.

 

Pergunta: A senhora acompanhou a vida dela até o fim?

 

Resposta:

Sim. Ela faleceu e meu pai faleceu em novembro.

 

Pergunta: (Inaudível)

 

Resposta:

Tudo que nós sabemos, entrar, sair e se comportar nos lugares, tudo foi minha mãe que ensinou. Eu lembro que nós éramos criança e minha mãe sentava todos na cama e ficava conversando com a gente. Minha mãe ensinava o que era bom e ruim, porque sempre tem um que dá uma torcidinha, como eu. Pode ter dez filhos, sempre tem um que dá uma torcidinha e a que deu a torcidinha fui eu.

 

Pergunta: Por quê?

 

Resposta:

Porque eu tive a menina. Naquele tempo tinha de casar para ter os filhos e eu tive a menina solteira.

 

Pergunta: A senhora ter uma filha sem casar nos anos 60 era problemático?

 

Resposta:

Naquele tempo era. Eu fiquei uma porção de tempo fora. Para você ver como minha mãe era simples, eu também estava esperando a menina mas era meio "tchonca", porque eu não sabia que estava esperando um bebê, mas achava que estava engordando. Via que a menstruação não vinha, mas a gente não sabia, porque as mães ensinavam tudo, mas não ensinavam o sexo como é aberto agora, como vejo a minha irmã com as duas filhas dela. Naquele tempo não.

 

Pergunta: Como ela falava?

 

Resposta:

Ela não falava nada, porque quando a minha mãe teve os menores que nós, a gente nem sabia que minha mãe estava esperando o bebê. Nessa parte nós éramos todos tapados. Quando minha mãe estava perto de ganhar o bebê, ela mandava a gente para as casas da vizinhas, e quando a gente voltava estava lá o bebê. Foi a cegonha que trouxe e nós ficávamos procurando o buraco por onde a cegonha tinha entrado. É incrível falar uma coisa dessas, mas de vez em quando eu junto minhas sobrinhas lá e fico contando para elas e é só risada. A gente ficava meditando, procurando o buraco da cegonha, mas naquele tempo a mãe falava e a gente acreditava. Eu estava esperando a minha filha e não sabia. Quando foi um dia o pai dela apareceu, porque ele também arrumou a mala e sumiu e naquele tempo você era muito boba, porque se alguém te falar que vai te matar, você já chega no fulano e fala para matar logo, mas naquele tempo eu era muito tapada e ele falou que se eu contasse alguma coisa para os meus pais ele me matava. Eu fiquei ali. Eu tonta e minha mãe também, porque ela era mais tonta, porque eu sempre fui gordona e eu estava esperando o bebê e minha mãe também não sabia. Olha a ignorância que era. Um dia uma vizinha falou para a minha mãe, ele apareceu um dia e falou que eu ia ganhar um bebê, mas não era para falar para ninguém e eu fiquei quieta.

 

Pergunta: O pai da menina?

 

Resposta:

Sim. Um dia uma vizinha falou para a minha mãe se eu estava esperando um bebê. Minha mãe falou que não, imagina. Tinha um médico, Dr. Miranda, perto do antigo Cine Raf e ela falou para a minha mãe me pegar e levar no Dr. Miranda para ver. Agora você tira Raio-X com mulher grávida e acontece isso e aquilo. Eu tirei Raio-X e não aconteceu nada, a menina nasceu forte, bonita e está aí. Ele me colocou atrás da máquina, aquele negócio enorme, e tirou o Raio-X. Ele foi e contou para a minha mãe.

 

Pergunta: Quando a senhora chegou ao médico, a sua mãe falou que estava indo lá para ver se você estava grávida?

 

Resposta:

Eu não sei. Minha mãe entrou, conversou com ele e ele veio tirar um Raio-X. Se ele tirou ou não também não sei. Ele foi conversar com a minha mãe.

 

Pergunta: Ele não mostrou o Raio-X?

 

Resposta:

Para mim não. Para minha mãe não sei. Eles armaram um rolo lá. Aí eu peguei e fiquei lá. Quando minha mãe saiu, ela queria saber quem foi. Eu falei que foi fulano, assim e assim.

 

Pergunta: A senhora inventou um nome?

 

Resposta:

Não. Até hoje a gente não tem costume de mentir, porque minha mãe ensinou a sempre falar a verdade, doa a quem doer. Eu falei para a minha mãe. Mas foi tão interessante, porque minha mãe me levou na terça-feira ao médico, na quarta-feira minha mãe contou para o meu pai e na quinta-feira fui ganhar ela.

 

Pergunta: Seu pai ficou muito bravo?

 

Resposta:

Ficou. Meu pai queria matar ele. Eu fui para o hospital, mas mãe é mãe. Ela foi lá me ver e até hoje lembro da carinha dela. Depois ela não me trouxe para casa, mas me levou para a casa de uma colega. Eu passei a dieta lá, depois ela me trouxe. Meu pai ficou por uns tempos bravo, mas depois passou.

 

Pergunta: E na vizinhança, ficava todo mundo falando?

 

Resposta:

O povo ficava, mas eu não saía para fora, ficava só dentro de casa. O povo fofoca sim. Hoje em dia é comum, mas naquele tempo era muito difícil. Aí minha mãe me tirou por uns tempos.

 

Pergunta: Tinha muitos vizinhos?

 

Resposta:

Quando ganhei já tinha muitos vizinhos.

 

Pergunta: A senhora descobriu que ia ter um filho dois dias antes?

 

Resposta:

Eu também não sabia.

 

Pergunta: Não tinha enxoval?

 

Resposta:

Não tinha nada. Aí minha mãe que se virou. Eu vou falar uma coisa, que se eu contar, vocês vão achar que é mentira. Eu ganhei a menina e não sabia por onde a criança nascia.

 

Pergunta: A senhora fez parto normal?

 

Resposta:

Fiz. A ignorância era nesse ponto. Naquele tempo era uma ignorância tremenda, porque os pais não conversavam com os filhos. Hoje em dia eles conversam, mas naquele tempo não. Era muito sofrido. Eu converso com moças que casaram e elas contam que foi muito triste porque as mães não explicavam. Hoje em dia é mais fácil.

 

Pergunta: Depois que a sua filha nasceu foi que a senhora voltou a trabalhar?

 

Resposta:

Voltei. Foi onde entrei nessa casa de família que fiquei bastante tempo.

 

Pergunta: E sua filha ficava onde?

 

Resposta:

Minha mãe que cuidava.

 

Pergunta: Na casa onde a senhora trabalhava, a senhora dormia lá?

 

Resposta:

Eu ficava lá. Eu fui mesmo para sair um pouco do rolo, porque o povo, naquele tempo era muito triste, o povo comentava e você se sentia lá embaixo, porque você entrou de bobeira e o povo não queria saber.

 

Pergunta: Ela tem quantos anos?

 

Resposta:

Tem 47 anos e é desse tamanho, ela não cresceu.

 

Pergunta: Você passava a semana inteira nessa casa?

 

Resposta:

Sim. Só a via no fim de semana. Às vezes, no meio da semana, minha mãe a levava para eu ver. Minha mãe a criou mas ela tinha uma cabeça muito boa. Ela foi ensinada que eu era a mãe dela. Minha mãe falava que estava criando, mas a mãe era eu. Ela sempre soube que eu era a mãe dela.

 

Pergunta: E como era essa relação? Seu trabalho era longe?

 

Resposta:

Não era muito longe. Eu morava no Parque das Nações e trabalhava em Camilópolis.

 

Pergunta: Dormia lá?

 

Resposta:

Sim. Ali eu criei uma porção de filhos, porque a mulher para quem eu trabalhava, ela bebia muito. Ela começava a beber antes do Natal e quando ela parava de beber ela perguntava se já tinha passado o Natal e eu falava que tinha passado o carnaval. Você já pensou uma mulher bebendo desse jeito? Então, os filhos dela eu que criei. Tem um que até me chama de mãe.

 

Pergunta: Ela não era casada?

 

Resposta:

Era casada, mas o marido não agüentava mais.

 

Pergunta: Você era registrada?

 

Resposta:

Não era. Eu trabalhei quase 23 anos sem ter registro, porque se eu fosse registrada eu tinha me aposentado muito antes. Eu perdi vinte e poucos anos.

 

Pergunta: A falta do registro era quando a senhora trabalhava em casa de família?

 

Resposta:

Isso. Nas empresas não.

 

Pergunta: Era a senhora que não queria registro?

 

Resposta:

Não. Naquele tempo você não estava nem aí. Não é como é agora, que quando você está trabalhando você já corre atrás para registrar. Naquele tempo não, você só estava trabalhando.

 

Pergunta: Na casa você tinha um quarto?

 

Resposta:

Tinha meu quarto. Ele era muito bonito, bem arrumadinho.

 

Pergunta: Era dentro da casa?

 

Resposta:

Sim.

 

Pergunta: Qual era o seu horário de trabalho?

 

Resposta:

Eu não tinha horário. Era da hora que acordasse até a hora de ir dormir. Se precisasse fazer hora extra também fazia, porque depois eu tinha de cuidar das crianças pequenas. Eu não tinha hora, para levantar sim, mas para terminar não.

 

Pergunta: O que a senhora fazia?

 

Resposta:

Fazia tudo. Lavava, passava, cozinhava, cuidava de criança, e dava conta de tudo. Agora, depois que você faz 15, já é difícil, mas antes de fazer 15 eu fazia tudo isso.

 

Pergunta: A senhora cozinhava. Que tipo de comida a senhora fazia?

 

Resposta:

Comida simples. Arroz, feijão, batatinha, abóbora, tudo comida simples. Só no domingo que a gente fazia uma coisa mais elevada, mas era aquele ritmo de comida todo dia. No domingo fazia macarrão, nhoque, lasanha, porque no domingo ele estava em casa e ajudava a olhar as crianças e eu tinha mais tempo. Mas durante a semana era arroz, feijão, salada, verdura.

 

Pergunta: E na sua família?

 

Resposta:

Também era a mesma coisa.

 

Pergunta: A sua família sempre foi evangélica. No Parque das Nações tinha igreja evangélica?

 

Resposta:

Tinha uma só, agora têm muitas. Era na Rua Egito. Onde era a igreja evangélica que a minha mãe freqüentava agora é uma associação antialcoólica.

 

Pergunta: E tinha muita gente?

 

Resposta:

A igreja era lotada.

 

Pergunta: Os cultos da igreja eram da mesma forma que são hoje?

 

Resposta:

Naquele tempo era mais rígido. Você tinha de usar a manga comprida, saia lá no pé, a blusa fechada, o cabelo você não podia passar tesoura, não podia pintar unha, não podia passar base, nada. Hoje em dia você passa uma base, um esmalte, corta o cabelo. Os nossos pais aprenderam errado e passaram para os filhos. Os filhos aprenderam e passaram. Agora todo mundo estuda, todo mundo lê e vêem que não é assim, que o Senhor não quer você oprimido desse jeito, porque o fardo dele é leve e os homens fazem você carregar aquele fardo pesado, e que não pode isso, não pode aquilo. Só não pode, nada pode.

 

Pergunta: Não podia assistir à televisão?

 

Resposta:

Não. Não podia nada.

 

Pergunta: A senhora tinha televisão?

 

Resposta:

Naquele tempo não.

 

Pergunta: E na casa dos outros?

 

Resposta:

Quem tinha, tinha escondido, socado no quarto, porque tinha de assistir escondido. Se algum dedo-duro visse e fosse contar para o pastor, ele dava bronca.

 

Pergunta: Na sua família todos são?

 

Resposta:

Todos.

 

Pergunta: E tinha uma pressão da Igreja Católica?

 

Resposta:

Nunca teve. Até hoje. Você vê que tem uma igreja católica e do lado tem outra igreja. Mas cada um fica na sua e ninguém se mete.

 

Pergunta: Vocês tinham rádio?

 

Resposta:

Sim. Mas naquele tempo não tinha evangelho no rádio como agora. Naquele tempo só tinha as músicas que a gente gostava de ouvir.

 

Pergunta: Como eram?

 

Resposta:

Aquelas músicas que agora nem lembro. De vez em quando eu começo a cantar em casa e meninas falam: Tia, onde você achou isso? São do meu tempo, aqueles forrós.

 

Pergunta: E como eles justificavam o fato de poder ouvir rádio e não poder assistir à TV?

 

Resposta:

É uma ignorância. Eles achavam que televisão, nós ouvíamos novela no rádio e era a mesma coisa. Eles achavam que se você fosse ver na televisão, como passa hoje, mulheres seminuas, mas naquele tempo não tinha essas coisas. Mas era ignorância. O povo não lia e seu pai passava para você uma coisa e você ia passar para os seus filhos. Os seus filhos iam passar para os outros aquilo que eles tinham aprendido. Era de pai para filho. Hoje em dia os filhos ensinam os pais. Vejo minhas sobrinhas falando que está careta, para não usar isso, e a minha irmã faz e eu vejo que está careta mesmo. Mas naquele tempo não, os pais falavam que a gente tinha de usar essa blusa, essa roupa.

 

Pergunta: O período da ditadura militar foi logo depois que a senhora teve a sua filha. O que a senhora lembra desse período?

 

Resposta:

Lembro que a gente não podia falar nada. A minha mãe falava para a gente não comentar nada, porque se falar tem alguém escutando e vocês vão presos. Veja a ignorância do povo. Nós éramos aquelas crianças frustradas. A gente não comentava nada e se alguém vinha comentar, a gente falava que não queria escutar. A gente não tinha. E você não tinha uma pessoa esperta para chegar e conversar, te explicar a coisa. Hoje em dia se você não sabe uma coisa, você vai a biblioteca e pega um livro. Naquele tempo não tinha nada.

 

Pergunta: A senhora via a repressão?

 

Resposta:

A gente via, mas quem ia lá perguntar o que era.

 

Pergunta: Se passasse polícia, o que acontecia?

 

Resposta:

A gente corria para debaixo da cama. Os pais punham aquele medo porque também não sabiam. A minha mãe não sabia e meu pai não era de sentar e conversar. Minha mãe punha aquele medo, que não podia falar porque tinha alguém escutando.

 

Pergunta: E o racionamento, quando faltavam alimentos?

 

Resposta:

Foi uma época que não tinha nada, não tinha pão, farinha de trigo. Às vezes minha mãe vinha na Prefeitura, porque falavam que aqui tinha feijão, eles davam feijão e minha mãe ficava naquela fila enorme, quilométrica. Quando chegava lá e colocava o feijão para cozinhar só o cheiro matava. Naquele tempo era saquinho de carvão e a gente gastava dois ou três sacos e o feijão não cozinhava. Não tinha pão. Para pegar um pedaço de pão tinha de enfrentar uma fila quilométrica. Teve uma época muito difícil. Eles falavam que não tinha farinha de trigo, porque se tivesse farinha, minha mãe faria aqueles bolinhos. Quando nós éramos pequenos a minha mãe não fazia bolinho, mas uns guampudos, nome que a minha mãe colocou. Ela fazia e nós comíamos com café e estávamos alimentados. Se tivesse farinha de trigo, ela fazia bijus, só que hoje é diferente. Ela fazia com farinha de trigo molhada, com sal e fritava na frigideira.

 

Pergunta: Faltava mais alguma coisa, fora o feijão e a farinha?

 

Resposta:

Faltava tudo.

 

Pergunta: Que época era essa?

 

Resposta:

Minha filha estava bebê. Tudo era difícil de encontrar, porque já era bem difícil. Quem tinha bastante dinheiro, eles davam um quilo para cada um, mas quem tinha bastante dinheiro colocava dez pessoas para comprar para eles.

 

Pergunta: Tinha muita greve nessa época?

 

Resposta:

Tinha, mas já é mais para frente. As greves foram mais para frente. Tinha greve que quando eu ia trabalhar em casa de família, você não podia passar porque era tanta polícia. A gente era criada naquele medo e às vezes minha mãe ia com a gente, porque a gente tinha medo de passar naquele pedaço.

 

Pergunta: A senhora lembra de alguma greve?

 

Resposta:

Lembro de uma greve no Rhodia, que tinha muita polícia com cavalos e a gente tinha medo. Eles não faziam nada com quem passava, mas nós fomos criadas naquele medo.

 

Pergunta: A senhora já era moça?

 

Resposta:

Já tinha passado da adolescência.

 

Pergunta: A senhora falou que se não tivesse tido preconceito, a senhora teria estudado mais. Como foi isso?

 

Resposta:

Naquele tempo tinha preconceito. A gente que é de cor, quer dizer, cor tem telefone, cadeira, porque eu sou negra, a gente que era negra não tinha chance, porque a escola era só aquela, e negro não tinha chance.

 

Pergunta: Na sua classe tinha mais crianças negras?

 

Resposta:

Mais claras. A gente ficava ali, mas só Deus sabe como a gente estudava.

 

Pergunta: Na hora de ficar na carteira, quem ficava na frente?

 

Resposta:

Os negros ficavam nas últimas.

 

Pergunta: As professoras que mandavam?

 

Resposta:

As professoras que colocavam cada um na sua carteira. Então a gente ficava lá atrás.

 

Pergunta: A senhora era boa aluna, tirava boas notas?

 

Resposta:

Sim. Se você tirasse boas notas e tivesse um pouco mais de dinheiro, porque você vê que quem tinha mas dinheiro andava sempre arrumadinha, então a gente era mais humilde mesmo. Os humildes, para chegar lá era mais difícil.

 

Pergunta: Para a mulher e para o homem?

 

Resposta:

Para os dois. Além de ser negro e não ter dinheiro, fica lá atrás. Agora não. Você vê que tem escolas muito bonitas com bastantes negros. Os negros enfiam a cara e tomam a iniciativa. Naquele tempo não.

 

Pergunta: E na sua vizinhança eram mais negros?

 

Resposta:

Não. Eram mais pessoas claras. De negros moravam nós. No quarteirão que eu morava tinha quatro famílias negras.

 

Pergunta: E o preconceito era só na escola?

 

Resposta:

Era em tudo, até no trabalho. No trabalho eu tinha, não era nem preconceito, mas um pouco de inveja, porque eu sempre fui forte para trabalhar e quando me davam um serviço e eu pegava a prática, eu ia embora e é ruim porque você começa a trabalhar e eu acho que o chefe não tem de ficar elogiando, porque isso dá preconceito, inveja, o povo vira a cara para você. Mas cada um tem seu jeito, um é mais rápido, outro é menos. Eu sofria preconceito aí.

 

Pergunta: A senhora se lembra de alguma situação desagradável, constrangedora, que a senhora tenha passado por causa disso?

 

Resposta:

Eu me lembro uma vez que quando ia chegar a minha vez me levaram lá para trás outra vez e o povo foi passando. É desagradável. Eu estava na fila da escola.

 

Pergunta: Era pequena?

 

Resposta:

Sim. Estava quase para chegar a minha vez, na hora da merenda. Mandaram esperar um pouco e a mulher veio e me colocou lá atrás. É uma coisa que marca, que você não esquece, mas não estou nem aí. Agora vou onde quero, entro onde quero. Se vier falar alguma coisa, já respondo à altura, sempre com educação. Mas, naquele tempo era mais difícil.

 

Pergunta: Suas irmãs passavam a mesma coisa?

 

Resposta:

Sim, principalmente minha irmã que trabalhava em fábrica também. Nós somos uma família muito trabalhadora. Uma coisa que aprendemos com meu pai e minha mãe foi isso e os filhos todos são assim. Ela sofria muito preconceito, mas quando ela entrou no hospital o povo foi olhando de lado, mas depois todo mundo passou a se agradar dela e ela trabalhou muito. O povo falava bem dela, os pacientes começaram a falar muito bem dela e foram melhorando com ela. Mas também até no hospital ela teve preconceito.

 

Pergunta: E o que as pessoas falavam das mulheres que eram solteiras?

 

Resposta:

A minha paixão sempre foi ser médica padrão. Agora não vou mais atrás disso, quando me libertei. Eu queria ser obstetra, mas não deu e não corri atrás.

 

Pergunta: No tempo que a senhora trabalhava na fábrica, como a senhora ia ao trabalho?

 

Resposta:

Usava ônibus. Quando eu trabalhava na Fortilit, a gente tinha vale-transporte. Nas outras firmas eu tirava dinheiro do bolso mesmo.

 

Pergunta: Como era o ônibus?

 

Resposta:

Era triste. Quantas vezes eu fui trabalhar pendurada na porta.

 

Pergunta: Quando trabalhava em São Paulo como era?

 

Resposta:

A minha mãe me levava até o ponto de ônibus. Naquele tempo, no inverno, você não enxergava daqui até aí. Ela ficava com cisma e me levava ao ponto, eu descia em Santo André e pegava o trem. Descia lá e andava um bom pedaço. Mas quando chegava lá sempre encontrava alguma colega.

 

Pergunta: A senhora já morava onde mora hoje?

 

Resposta:

A minha mãe me trouxe enrolada nas fraldas. Ali eu nasci e me criei. Moro na mesma casa. A gente morava na Rua Hungria, que é na frente, e viramos a casa e moramos numa travessa, mas é a mesma casa, o fundo do mesmo quintal, só que a Hungria fica aqui e eu moro na travessa.

 

Pergunta: O que a senhora lembra da cidade de Santo André?

 

Resposta:

Lembro quando começou a fazer a Prefeitura e a gente era curiosa para ver a construção. Minha mãe, às vezes de domingo, pegava a gente para passear e trazia a gente em Santo André.

 

Pergunta: Vocês iam a cinema?

 

Resposta:

Ia muito pouco. Eu fui mais quando tinha uns 19 anos. Eu ia sempre sozinha, porque eu via o filme que ia passar amanhã e queria ver de novo e ninguém queria ir. Depois larguei.

 

Pergunta: E quando a senhora tinha namorado, para onde vocês iam?

 

Resposta:

A gente ia muito para parquinho. Naquele tempo tinha muito parquinho, muita quermesse. Era o lugar em que você ia namorar, porque hoje em dia você namora em qualquer lugar. Não tem nem dia nem horário. Naquele tempo a gente ia namorar nas quermesses, no parquinho. Perto da igreja, onde é o posto de puericultura, era parquinho e a gente ia todo fim de semana.

 

Pergunta: Quando vocês ficavam doentes, quando eram crianças, como seus pais faziam?

 

Resposta:

Minha mãe trazia aqui na Santa Casa.

 

Pergunta: Era bom o atendimento?

 

Resposta:

Você ficava o dia inteiro esperando, mas eles atendiam. Depois você voltava para casa e a gente ia embora para casa. Quando minha mãe tinha dinheiro, a gente voltava de ônibus, mas ele parava lá embaixo e nós subíamos a pé. A minha mãe esperava melhorar e ia arrastando os neguinhos para casa.

 

Pergunta: A descendência da sua família vem de onde?

 

Resposta:

Meu pai veio de Minas. Os pais dos meus avós moravam em Minas, mas meu pai já nasceu aqui. Minha mãe nasceu em Cachoeira Paulista. Chegou aqui, achou meu pai e eles se casaram.

 

Pergunta: A gente está encerando e no final a gente pede que a pessoa deixe um recado, uma mensagem registrada. Se a senhora quiser falar alguma coisa da sua vida, pode falar.

 

Pergunta:

Quem for assistir a esta fita que tenha fé e vá para frente, porque eu sofri com tudo isso, mas agora estou, lutei, consegui chegar aonde cheguei, faço o que quero agora, vou para onde quero e sou uma pessoa livre e desimpedida e lutei, não fiquei agarrada, porque tem muita gente que tem um sofrimento lá atrás e fica triste, não faz nada porque sofreu. Não. O que passou, passou. Você tem de largar o passado e ir para frente e vencer na vida, porque não podemos ficar amarrados ao passado, porque se fosse ficar amarrada, não tinha feito nada e não tinha conseguido nada da minha vida, porque eu trabalhei, consegui comprar meu carro, consegui fazer muita coisa, consegui arrumar minha casinha, não está ainda pronta, mas já está bem bonita, uma casa de gente, porque o povo acha que porque a gente é negro tem de morar na favela ou debaixo do viaduto. Não podemos pensar assim. Temos de pensar que temos de ir para frente. Lutar, porque se ficar parado não dá. Você tem de ter uma meta e seguir aquela meta para chegar lá. Como eu cheguei, quem assistir também vai chegar e ter uma vida boa.



« VOLTAR


Em realização

Realização Hipermidias

Apoio

Apoio Fapesp Finep USCS
TOPO